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A CRÍTICA RADICAL DE MARX AO ESTADO, PARTIDOS E SINDICATOS ENTREVISTA COM MATHEUS ALMEIDA E RUBENS VINICIUS DA SILVA

 A CRÍTICA RADICAL DE MARX AO ESTADO, PARTIDOS E SINDICATOS

 

ENTREVISTA COM MATHEUS ALMEIDA E RUBENS VINICIUS DA SILVA

 

EDIÇÕES REDELP

 

 


Matheus Almeida
é pesquisador, antropólogo e militante autogestionário; É Graduado em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Mestre em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutorando em Antropologia pela USP. Escreveu vários artigos sobre antropologia, marxismo, questão do Estado e outros temas.

Rubens Vinicius da Silva é pesquisador, sociólogo e Militante Autogestionário; é Graduado em Ciências Sociais pela FURB/SC; Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Escreveu vários artigos sobre Marxismo, partidos políticos e diversos outros temas.

 

Rubens Vinicius da Silva e Matheus Almeida são os organizadores da obra Marx: Estado, Partidos e Sindicatos (Goiânia: Edições Redelp, 2021), na qual também contribuem como autores de capítulos do livro, ao lado de Nildo Viana, que contribui com um capítulo sobre “Marx e os Sindicatos”. Os dois organizadores nos concederam uma entrevista sobre esta obra e questões correlatas visando trazer esclarecimentos a respeito da questão do pensamento de Marx a respeito do Estado, Partidos e Sindicatos.

 

Edições Redelp: Qual é a intenção ou objetivo dos senhores ao lançarem essa obra na atualidade?

 

Matheus Almeida e Rubens Vinicius da Silva: O que nos motivou a lançarmos essa obra foi, basicamente, duas significativas necessidades. A primeira delas era desfazer as principais confusões e deformações que existem em torno do pensamento de Marx a respeito do Estado, dos partidos políticos e dos sindicatos. A segunda, que é condição de possibilidade para realizar a primeira, era retomar de maneira rigorosa o sentido original da concepção de Marx quanto a estas organizações. Com isso, nossa intenção é demonstrar que, apesar de muita tinta já ter sido derramada sobre estes temas, a compreensão e a postura de Marx em relação ao Estado, aos partidos e aos sindicatos permanecem desconhecidas por parte do grande público e mesmo entre muitos dos que são tidos como especialistas na sua obra. Mais do que isto: demonstramos nesse livro que várias dessas interpretações comuns sobre o pensamento de Marx não apenas diferem da concepção deste autor, como antagonizam com ela. Portanto, considerando esse antagonismo e a urgência de resgatar a concepção de Marx para contribuir com a compreensão da sociedade capitalista e da luta de classes na contemporaneidade, este livro se fez necessário.

 

Edições Redelp: Marx é considerado um autor estatista e que propunha como socialismo a “estatização dos meios de produção”. A ideia comum é a de que Marx propunha a abolição do Estado apenas no comunismo, mas que, antes disso, no período de transição, que seria o socialismo, o “Estado operário” seria o responsável pela gestão dos meios de produção e iria se “definhando” e, um dia, desaparecer. O livro contesta essa tese. De onde surgiu tal concepção se não é de Marx e é atribuída a ele?

 

Matheus Almeida e Rubens Vinicius da Silva: A tese do Marx estatista, que via no Estado uma ferramenta indispensável para realizar a revolução proletária, tornando-se um “Estado operário” para promover o socialismo e se definhar com o advento do comunismo, embora muito disseminada e aceita, é uma das maiores deformações do pensamento de Marx. Na verdade, a concepção de Marx quanto ao Estado se desenvolve ao longo do tempo, mas o que demonstramos neste livro é que o pensador alemão foi um crítico radical do Estado desde as suas primeiras obras até o final de sua vida, encontrando na experiência revolucionária da Comuna de Paris e na sua subsequente obra A Guerra Civil na França, em que analisa esta revolução, o momento de maior maturidade da sua compreensão relativa ao Estado. O que vemos é um Marx a favor da abolição imediata do Estado como uma das tarefas indispensáveis do movimento revolucionário do proletariado, para que a sociedade capitalista seja superada e o comunismo seja constituído nesse processo de superação. Todavia, por diferentes razões que são apontadas no livro, esta concepção de Marx foi deformada tanto por seus supostos apoiadores quanto por seus adversários, e diversas interpretações ideológicas surgiram neste sentido. A mais notória entre elas, a principal responsável pela substituição da teoria de Marx de abolição do Estado pelo “definhamento” estatal em uma sociedade transitória entre o capitalismo e o comunismo chamada de socialismo nesta ideologia, foi a de Lênin. Especialmente em seu livro O Estado e a Revolução, o dirigente bolchevique operou uma sistemática deformação dos escritos de Marx sobre o Estado e a Comuna de Paris, e consolidou as bases ideológicas desta tão difundida distorção do pensamento do revolucionário alemão, que é o leninismo. Por isto, uma das empreitadas de nosso livro foi realizar uma análise crítica das distinções e dos antagonismos entre o pensamento de Marx sobre o Estado e a sua superação via revolução proletária e o pensamento de Lênin quanto a estes fenômenos. Aferimos o quão irreconciliáveis são a teoria daquele autor e a ideologia deste, na contramão da tese defendida por muitos de que existiria uma complementariedade e quase exatidão entre o pensamento desses autores.

 

O que vemos é um Marx a favor da abolição imediata do Estado como uma das tarefas indispensáveis do movimento revolucionário do proletariado, para que a sociedade capitalista seja superada e o comunismo seja constituído nesse processo de superação.

 

Edições Redelp: Como seria possível explicar que as ideias de Marx, tendo em vista a acessibilidade de suas obras, sejam assim interpretadas e isso não seja verdadeiro? Como explicar que essa versão é reproduzida por diversos “marxistas”, cientistas políticos, sociólogos, filósofos, ativistas, livros didáticos, manuais de sociologia?

 

Matheus Almeida e Rubens Vinicius da Silva: Diferentes determinações políticas e históricas permitiram que tal falseamento da obra de Marx fosse instaurado, difundido e tão amplamente considerado como verdade. No livro, apontamos a associação equivocada entre o pensamento de Marx e a ideologia do socialismo de Estado de Ferdinand Lassalle, a adoção de uma postura cada vez mais estatista e eleitoralista do velho Engels após a morte de Marx, a consolidação do Partido Social-Democrata da Alemanha e com isto de “intérpretes canônicos” da obra de Marx (como Karl Kautsky) que buscaram conciliar o pensamento marxista com os interesses burocráticos desta organização partidária, e o advento da ideologia kautskista-leninista que se consagra como “a doutrina oficial do marxismo” com a contrarrevolução burocrática de outubro de 1917 na Rússia que levou à bolchevização dos partidos políticos no mundo e ao capitalismo de Estado da URSS. Além disso, poderíamos acrescentar que, com a derrota dos sovietes e das tendências de oposição operária na Rússia, e com o esmagamento da revolução alemã de 1918-1923 e de outras revoltas e tentativas de revoluções proletárias nesta década, o que levou a um arrefecimento do movimento operário durante as décadas subsequentes e a um enfraquecimento de organizações e tendências marxistas antileninistas, como o comunismo de conselhos, ao mesmo tempo em que se consolidava o domínio bolchevique no leste europeu, a deformação leninista do pensamento de Marx encontrou caminho livre para se difundir como sendo a própria concepção de Marx em todo o mundo, inclusive sob chancela de organizações políticas e intelectuais consagrados dentro e fora das universidades. O marxismo autêntico foi obscurecido ao ser confundido com o pseudomarxismo leninista, ao passo que as obras de Marx eram cada vez mais publicadas. Partindo desta deformação, muitas outras ideologias foram sendo desenvolvidas ao redor do mundo, nas universidades e nos partidos políticos, algumas delas em oposição a outras, mas todas compartilhando aquele falseamento fundamental, que é tomado como verdade ainda hoje para a maior parte dos ditos especialistas na obra de Marx. A intensa produção ideológica e propagandística da URSS e dos Partidos Comunistas de diversos países reforçando a deformação leninista, e, ainda, a concordância das nações de capitalismo privado em atribuir o marxismo ao capitalismo de Estado “soviético”, contribuíram significativamente para a naturalização dessa hegemonia pseudomarxista.

 

Edições Redelp: Marx, segundo as interpretações dominantes, propunha um processo revolucionário no qual o proletariado realizaria uma revolução e implantaria o comunismo e isso ocorreria sob a direção do partido comunista. Essa interpretação do pensamento de Marx também seria equivocada? Marx abordou um “partido comunista” e sua função no processo revolucionário?

 

Matheus Almeida e Rubens Vinicius da Silva: A teoria da revolução social de Marx também é um dos aspectos mais deformados do pensamento deste autor. E isto porque a sua teoria é tomada a partir da interpretação ideológica de outros autores, como Lênin. Para Marx, os partidos não possuíam nenhuma potencialidade revolucionária: esta competia ao proletariado. Sendo assim, é a classe operária, e não os partidos, que é o agente revolucionário na teoria da revolução deste autor. Além disso, é preciso compreendermos que a ideia e a existência de partidos na época em que Marx viveu eram bastante distintas do que veio a se consagrar no século 20. Marx viveu o momento de criação dos primeiros partidos políticos que se autoproclamavam como defensores do proletariado, e em situações pontuais, colaborou à distância com estas nascentes organizações na Alemanha nos anos 1860, estimulando uma possibilidade (que logo viu-se inexistente) delas contribuírem com a luta proletária. Mas para Marx, quando usava a palavra “partido”, não era no sentido de uma organização formal, e sim a posição de uma classe. É neste sentido que Marx deu o título ao Manifesto do Partido Comunista, de 1848. Tão logo o processo de burocratização dos partidos políticos se acirrou, Marx se tornou cada vez mais um crítico contumaz dessas organizações, inclusive alertando para a falta da perspectiva proletária nelas. Portanto, para Marx a palavra “partido” tem mais de um sentido: um geral, significando a posição de uma classe, e um organizacional, referindo-se aos partidos que foram criados a partir do final de sua vida. Quando se refere a partidos como organizações, Marx é um crítico enfático, demonstrando que estas não podem ser consideradas como ferramentas para a luta revolucionária do proletariado. Assim, na perspectiva de Marx, é a classe proletária autodeterminada que pode realizar o movimento revolucionário que supera o capitalismo, e não indivíduos ou organizações que se coloquem como dirigentes desta classe.

 

A intensa produção ideológica e propagandística da URSS e dos Partidos Comunistas de diversos países reforçando a deformação leninista, e, ainda, a concordância das nações de capitalismo privado em atribuir o marxismo ao capitalismo de Estado “soviético”, contribuíram significativamente para a naturalização dessa hegemonia pseudomarxista.

 

 

Edições Redelp: Historicamente, inúmeros partidos políticos se autodeclararam “marxistas”, desde o período final da vida de Marx. Hoje, no Brasil, há vários partidos que admitem influência de Marx e alguns se dizem “marxistas” (expressando correntes diferentes no interior do “marxismo”, especialmente trotskistas, stalinistas e maoístas). Como explicar a análise crítica dos partidos por parte de Marx e a existência de partidos supostamente “marxistas”. Como isso é possível?

 

Matheus Almeida e Rubens Vinicius da Silva: Podemos dizer que, se a posição de Marx é a da crítica aos partidos não os considerando como instrumentos para a luta revolucionária do proletariado, uma posição que defende a organização partidária e a considere como indispensável para a revolução proletária só pode advir não de Marx, mas de outros autores. Neste caso, esta concepção partidária é fundamentalmente provida de Lênin, o mais célebre deformador do pensamento de Marx. É preciso dizer que Marx morreu em 1883, em um momento ainda incipiente no processo de burocratização do Partido Social-Democrata da Alemanha, e ainda assim podemos ver a sua postura crítica. Portanto, Marx não viu o momento de burocratização avançada deste partido, e tão pouco viu outros partidos que emergiram, como os autodenominados Partidos Comunistas de diferentes países. Estes partidos, criados a partir dos anos 1920, possuem como referência política e ideológica máxima o pensamento de Lênin, especialmente em suas teses do “centralismo democrático” (na verdade, um centralismo burocrático, posto que reforçava a posição da cúpula dirigente e reduzia ao máximo a capacidade de ação dos militantes partidários, asfixiando a discussão e impondo as diretrizes do Comitê Central), da ideologia da vanguarda, da nulidade proletária agindo por sua própria conta, da crítica ao “espontaneísmo” (na verdade, à espontaneidade revolucionária), da necessidade de uma disciplina de ferro no partido, e do substitucionismo (como o próprio jovem Trotsky antileninista, antes de aderir ao bolchevismo e ao leninismo, formulou) da classe proletária pelo partido, do partido pelo comitê central, e do comitê central pelo dirigente máximo. Em suma, tais organizações burocráticas são guiadas pela ideologia da burocracia partidária que Lênin consolidou, complementando certos elementos já presentes na obra de Kautsky. Com a consolidação desse formato de organização por Lênin na URSS, e em seguida, com as disputas por poder entre diferentes frações de seus séquitos após a morte do mestre, surgiram as variações stalinistas, trotskistas e outras que se diferenciam no que é secundário, mas se assemelham no que é primário: a defesa da necessidade de um partido que sirva de vanguarda para guiar o inculto proletariado que não é capaz de fazer a revolução jogado à própria sorte. Sendo assim, todas estas organizações espalhadas pelo mundo, apesar de se autoproclamarem como marxistas em alguns casos, não o são realmente: de maneira mais precisa, são organizações pseudomarxistas, leninistas e/ou algum de seus derivados (trotskista, stalinista, maoísta etc.), e isto quer dizer que são organizações burocráticas, cindidas entre dirigentes e dirigidos, disputando o poder do Estado em busca de um capitalismo privado reformado ou de um capitalismo de Estado, e assim, não são organizações proletárias, que lutam pela revolução social, pelo fim do capitalismo e pela instauração do que Marx chamou de comunismo e que atualmente denominamos de autogestão social.

 

Edições Redelp: A luta operária, segundo Marx, aponta para a revolução social. Esta geraria uma nova sociedade, sendo uma revolução total. Mas para chegar a isso, o proletariado precisaria se unir (“proletários de todo o mundo, uni-vos”), se organizar e desenvolver sua consciência, sendo que os partidos e sindicatos seriam organizações responsáveis por esse processo. Essa é a real concepção de Marx? A passagem de “classe em-si” a “classe para-si” se dá através de sua organização via partidos e sindicatos?

 

Matheus Almeida e Rubens Vinicius da Silva: Na realidade, a luta operária na concepção de Karl Marx aponta sim para a revolução social e total, gerando uma nova sociedade, radicalmente distinta. Além disso, também é verdadeiro que, para tanto, a classe operária precisa se unir e desenvolver sua consciência. A grande questão é que tanto os partidos políticos quanto os sindicatos sofreram um processo irreversível de burocratização (que consiste no aumento, transformação e criação de organizações burocráticas, as organizações dominantes no capitalismo, marcadas pela relação social entre dirigentes e dirigidos, na qual os primeiros controlam o processo de tomada de decisões e fixam os objetivos da organização, cabendo aos últimos a simples execução das tarefas e a ratificação dos desígnios dos burocratas, que dirigem as organizações burocráticas, cuja razão de ser é a execução e intensificação do controle social visando reproduzir as relações de produção e o conjunto das relações sociais capitalistas), o qual, é preciso destacar, foi percebido ainda em sua gênese pelo próprio Marx. O termo “partido” na época de Marx, dizia respeito a um conjunto de indivíduos que partilhava de uma concepção política, ou seja, defendiam e expressavam determinada posição em comum na luta política. Ademais, conforme mencionamos, o foco de Marx era a totalidade da classe e não as organizações isoladas. Os sindicatos, também nascentes e produtos da luta operária, foram também percebidos criticamente por Marx, sobretudo na passagem das coalizões (que eram o verdadeiro foco de Marx, ou seja, as associações/coalizões operárias, produtos da concentração do proletariado por parte do capital e formas de auto-organização desta classe, elas seriam os meios para atingir o fim último, a revolução social) para os sindicatos. A luta por meio das coalizões e sua generalização faria emergir uma associação revolucionária, contribuindo fundamentalmente para a passagem da classe “em-si” (determinada pelo capital e submetida às relações de produção capitalistas, fundadas na exploração do proletariado via extração de mais-valor e sua consequente dominação por parte da burguesia) para a classe “para-si” (autodeterminada, quer dizer, que no seu processo de luta constitui organizações autárquicas que ao mesmo tempo põem em xeque as relações de produção capitalistas e configuram o embrião das relações sociais futuras, marcadas pela abolição da exploração e dominação de classe, bem como das classes sociais em geral). Na sua crítica aos partidos operários e à social-democracia que emergiam na segunda metade do século 19, ele percebe o paulatino abandono da expressão dos interesses de classe do proletariado revolucionário, em consonância com a busca por alianças e colaboração entre os interesses do proletariado e do capital, amortecendo a luta de classes e se afastando do projeto revolucionário. Somado a isso, Marx criticou em diversas oportunidades as concepções que viam na classe operária algo passivo, que deveria ser “liberta” pelas cúpulas dos filantropos burgueses e seus porta-vozes na luta política, não podendo se emancipar por si própria. Em alguns textos, Marx irá intitular esta fração de classe de “pequena-burguesia”: hoje, com maior precisão conceitual, podemos perceber que Marx estava realizando uma crítica de uma fração da burocracia (uma classe social específica do capitalismo, que emerge nas fábricas e no Estado e se caracteriza pelo exercício do controle social, sendo uma classe não-proprietária, que realiza trabalho improdutivo e é uma classe social auxiliar da burguesia), a burocracia partidária. Com o avanço do capitalismo ocorre o processo irreversível de burocratização destas duas organizações, algo que se consolidou depois de Marx. A partir do final do século 19 as transformações no capitalismo constrangeram à burocratização dos partidos e sindicatos:  de organizações autárquicas (isto é, sem a cisão entre dirigentes e dirigidos, que caracteriza as sociedades de classes e o capitalismo em específico) se metamorfoseiam em organizações burocráticas, abandonando o objetivo da revolução social e se tornando preocupadas tão somente com sua autorreprodução. Os partidos e sindicatos deixam de ser expressão dos interesses de classe do proletariado e passam a ser expressão dos interesses de frações da burocracia. Os burocratas partidários e sindicais possuem interesses próprios, antagônicos aos do proletariado: buscam negociar o preço da força de trabalho e são inúmeras as experiências históricas de luta da classe proletária no século 20 que atestam como partidos políticos e sindicatos em sua totalidade foram importantes para o esmagamento e destruição das formas de auto-organização do proletariado (sovietes, conselhos operários, comitês de fábrica). Assim, do mesmo modo que Marx apontou, quando enfatizou a coalizão e a associação como embriões da sociedade futura, os desdobramentos da luta de classes no capitalismo do século 20 evidenciaram a certeza de que a passagem da classe operária em classe determinada (“em-si”) para classe autodeterminada (“para-si”) só é concebível com a superação e combate radical aos partidos políticos e sindicatos, que se tornaram (e isso é um processo irreversível) organizações burocráticas, com interesses próprios vinculados ao capitalismo e que, portanto, possuem horror à revolução social, pois esta abolirá as classes sociais e as organizações burocráticas, que reproduzem no seu interior a divisão social do trabalho característica da sociedade capitalista.

 

Edições Redelp: Uma das ideias essenciais do livro é a de que o pensamento de Marx foi deformado e por isso realiza um resgate pormenorizado das obras deste pensador para resgatar a sua verdadeira concepção. Existe uma “interpretação verdadeira”? Isso não contraria as ideias hegemônicas hoje, segundo a qual toda interpretação é verdadeira?


Matheus Almeida e Rubens Vinicius da Silva:
A verdade é a expressão de uma consci­ência correta da realidade em suas múltiplas determinações. Numa sociedade de classes, a classe dominante e suas clas­ses auxiliares não se interes­sam pela verdade, pois tal fenômeno revelaria a explora­ção e a dominação de classe, que uma vez ameaçadas pode­riam ser superadas pela ação revolucionária da classe ex­plorada e suas aliadas. Em se tratando da sociedade capitalista, torna-se óbvio que a burguesia (e suas classes auxiliares, burocracia – partidária, sindical, empresarial, estatal etc. – e intelectualidade) não se interessa pela verdade, ao passo que o proletariado (submetido às “cadeias radicais” mencionadas por Marx na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, expressas nas relações de exploração via extração de mais-valor e sua apropriação pela burguesia) e os setores que com ele querem lutar têm o maior interesse na verdade, pois isso tenderia a acelerar o processo de luta revolucionária. A luta de classes surge nos locais de produção, mas se expande e se generaliza ao conjunto da vida social, invadindo todos os aspectos da vida em sociedade como a cultura, a mentalidade etc. Há uma luta cultural em torno das ideias, intepretações e explicações da realidade, que expressa a luta de classes, os interesses e as relações conflituosas entre as classes sociais no capitalismo. Como disse o próprio Marx em A Ideologia Alemã, as ideias dominantes numa sociedade de classes são as ideias da classe dominante, pois esta detém não só os meios de produção material, mas também os meios de produção cultural, produzindo um conjunto de ideias, representações, correntes de opinião, doutrinas, ideologias, etc. voltadas à reprodução das relações de exploração e dominação características do capitalismo. Assim, fica fácil entender como as ideias hegemônicas são aquelas que melhor expressam os interesses da classe dominante, constituindo uma hegemonia burguesa que se espalha pela sociedade e domina o conjunto da produção cultural, constituindo um verdadeiro modo de pensar, ou seja, um modo subjacente de produzir e reproduzir ideias, que impacta diretamente na intepretação e percepção da realidade pelos membros das distintas classes sociais. Portanto, nem toda intepretação é verdadeira: as interpretações falsas grassam no capitalismo contemporâneo, marcado cada vez mais pelo desprezo pela teoria, recusa do debate e da comunicação, servindo como uma luva para os interesses da classe capitalista, a classe dominante no capitalismo. Neste sentido, toda interpretação é perpassada e expressa uma determinada perspectiva de classe de quem a realiza, isso conscientemente ou não. O capitalismo contemporâneo, marcado pelo regime de acumulação integral e pelo paradigma hegemônico subjetivista, busca ocultar a verdade, recusando-a em nome de uma suposta “pluralidade de intepretações”. Ora, na realidade tal recusa vai ao encontro dos interesses da classe dominante: não surpreende que os mesmos defensores da inexistência de “uma interpretação verdadeira” são os que reproduzem as deformações do pensamento de Marx, sem o menor interesse em dissimular os seus verdadeiros interesses de classe. A intepretação verdadeira do pensamento de Marx é aquela que expressa corretamente o seu pensamento, que é caracterizado por ser a expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado (como bem definiu Karl Korsch na obra Marxismo e Filosofia). Das deformações operadas pela social-democracia e pelo bolchevismo emerge o pseudomarxismo, expressão ideológica da burocracia (quer seja a moderada, como no caso social-democrata que abandona o projeto revolucionário em prol de reformas e do reforço do capitalismo privado, quer seja a burocracia radicalizada bolchevique, que propõe um capitalismo reformado marcado pela estatização dos meios de produção em sua variante capitalista estatal). Por último, a interpretação verdadeira do pensamento de Marx (isto é, expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado e uma arma da crítica radical em prol da autoemancipação operária, sinônimo de autoemancipação humana) não só contraria como demonstra os verdadeiros interesses de classe por detrás de concepções falaciosas, como a de que toda interpretação é verdadeira, que só fazem reforçar as ilusões que permeiam a sociedade capitalista, cada vez mais marcada pelo aumento da miséria psíquica, cultural, política e material.

 

Edições Redelp: Se nem toda interpretação é verdadeira, então qual é o critério para descobrir qual é a verdadeira?

 

Matheus Almeida e Rubens Vinicius da Silva: O critério para descobrir qual a intepretação verdadeira só pode ser a perspectiva do proletariado revolucionário, como Marx já explicara. É o proletariado que, devido às relações de exploração e dominação de classe, ao trabalho alienado, possui interesse na verdade, condição essencial para a sua libertação. Partir da perspectiva do proletariado significa ser portador de valores, interesses, sentimentos, concepções, mentalidade que expressam os interesses verdadeiros da humanidade, constituindo-se num humanismo radical (e ser radical é ir às raízes das coisas, sendo que a raiz do ser humano é o próprio ser humano, para citar novamente Marx em sua Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel). Por conseguinte, unindo tais valores, interesses, sentimentos, concepções, etc. com o desenvolvimento de uma “bagagem cultural” marcada pela cultura contestadora e revolucionária, é possível contribuir com a luta cultural pela sociedade sem classes, marcada pela autogestão social. Portanto, a teoria revolucionária faz parte da perspectiva do proletariado, sendo sua expressão num universo conceitual que explica e expressa corretamente e de forma verdadeira a realidade em suas múltiplas determinações. O critério da perspectiva do proletariado revolucionário permite uma maior desconfiança e criticidade com relação às ideias hegemônicas, que são as ideias da classe dominante: somente partindo da perspectiva do proletariado percebemos a historicidade, transitoriedade e particularidades das relações sociais capitalistas, vendo na miséria não apenas o seu lado negativo mas, antes, seu lado subversivo e a tendência real de transformação social radical e total mediante a luta proletária revolucionária.

 

Edições Redelp: Existem outros autores e intérpretes que concordam com a interpretação que vocês apresentam? Quais?

 

Somente partindo da perspectiva do proletariado percebemos a historicidade, transitoriedade e particularidades das relações sociais capitalistas, vendo na miséria não apenas o seu lado negativo mas, antes, seu lado subversivo e a tendência real de transformação social radical e total mediante a luta proletária revolucionária.

 

Matheus Almeida e Rubens Vinicius da Silva: Nós somos expoentes do marxismo autogestionário, que é a expressão teórica do movimento proletário revolucionário (marxismo) no capitalismo contemporâneo, marcado pelo regime de acumulação integral e pelo paradigma hegemônico subjetivista. O marxismo autogestionário resgata, aprofunda e atualiza as contribuições do marxismo original (Marx e, em menor medida Engels, durante o regime de acumulação extensivo), de alguns marxistas mais ou menos ambíguos (como Rosa Luxemburgo e Jan Waclav Makhaïski, críticos contemporâneos do bolchevismo e da social-democracia) e do comunismo de conselhos (que foi a expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado durante o regime de acumulação intensivo e conjugado). O marxismo autogestionário tem como princípios fundamentais: a) a crítica total e radical da sociedade capitalista; b) a crítica radical e total das ideologias; c) a luta pela autoemancipação proletária (quer dizer, a revolução proletária efetivada pela classe operária e o conjunto de seus aliados) como a forma de realização da autoemancipação humana (o humanismo concreto, portanto revolucionário); d) a compreensão de que a autogestão é a essência da sociedade pós-capitalista (e não uma “parte dela”: trata-se da sua determinação fundamental que uma vez surgindo necessita se generalizar para o conjunto das relações sociais); e) o entendimento de que o marxismo é sinônimo de teoria revolucionária; f) a recusa e a crítica da social-democracia e do bolchevismo, expressões ideológicas da burocracia, classe social contrarrevolucionária, razão pela qual deve ser radicalmente combatida, do mesmo modo que as organizações burocráticas (partidos políticos, sindicatos, Estado, etc.); g) a necessidade de desenvolvimento e atualização constantes do marxismo; h) a necessidade de adequação linguística do marxismo ao estágio atual do capitalismo, cuja premissa é a utilização do conceito de autogestão social como substituto ao de comunismo, deformado pelo bolchevismo e pela social-democracia; i) a assimilação das contribuições da psicanálise; j) a análise crítica do capitalismo contemporâneo, tal como a crítica desenvolvida ao regime de acumulação integral. O marxismo autogestionário emerge na França, no bojo das lutas radicalizadas do Maio de 1968, e tem como seu principal representante neste período Yvon Bourdet, que em conjunto com Allain Guillerm (outro importante marxista autogestionário) escreveu uma obra fundamental, que no Brasil foi traduzida com o título de Autogestão: uma mudança radical. No caso brasileiro, o nome de Maurício Tragtenberg é essencial, por ter sido o primeiro representante do marxismo autogestionário no país, embora com algumas ambiguidades (devido à falta de rigor e de apropriação radical do método dialético, às influências de Max Weber – sua principal referência, junto com Marx – e a certas concessões ao autonomismo radical). Seu livro Reflexões sobre o Socialismo é um trabalho importante para a assimilação do marxismo autogestionário. Por fim, desde o final dos anos 1990 até o momento presente a obra de Nildo Viana se constitui como a principal expressão do marxismo autogestionário. Entre seus diversos livros, destaca-se Manifesto Autogestionário, uma atualização do Manifesto Comunista de Marx e Engels, na qual o autor traz aspectos fundamentais da perspectiva autogestionária. Ainda no Brasil, podemos destacar nomes de pensadores e militantes autogestionários como Lucas Maia, Lisandro Braga e Edmilson Marques. Em nível organizacional, cumpre mencionar o Movaut – Movimento Autogestionário, organização da qual somos parte e cujo objetivo é contribuir com a luta pela superação do capitalismo e instauração da sociedade autogerida, efetivamente humanizada e na qual a humanidade desenvolverá o conjunto de suas potencialidades.

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