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"AS RELAÇÕES ENTRE MARXISMO E DARWINISMO” - ENTREVISTA COM ANTON PANNEKOEK



“AS RELAÇÕES ENTRE MARXISMO E DARWINISMO”
ENTREVISTA COM ANTON PANNEKOEK
EDIÇÕES REDELP


Anton Pannekoek nasceu na Holanda (Países Baixos), astrônomo reconhecido mundialmente e um dos principais pensadores marxistas do século 20. Ele ficou célebre mundialmente com a publicação de sua obra História da Astronomia, bem como recebeu a Medalha de Ouro da Royal Astronomical Society. Ele escreveu sobre temas ligadas às ciências naturais, sua área profissional, mas também se destacou por trabalhar questões sociais e políticas, enquanto representante destacado do marxismo e militante revolucionário. Depois de sua passagem pela social-democracia, na qual era um dissidente, se torna um representante do “socialismo radical” (um nome genérico para as várias tendências que romperam com a social-democracia após 1914, devido ao seu envolvimento com o apoio à guerra), e, posteriormente, se torna um dos mais destacados representantes do chamado “comunismo de conselhos”. Pannekoek publicou obras fundamentais para o desenvolvimento do marxismo, especialmente Os Conselhos Operários, Revolução Mundial e Tática Comunista, Lênin Filósofo (a ser publicado pela Edições Redelp). A Edições Redelp fez uma entrevista montagem[1] com Anton Pannekoek a respeito da relação entre marxismo e do darwinismo, ou seja, sobre a temática do livro agora publicado e questões relacionadas.

Edições Redelp: Qual é a importância de autores como Marx e Darwin?

Anton Pannekoek: Dificilmente dois cientistas poderiam ser mencionados, a partir da segunda metade do século XIX, que tenham influenciado a mente humana em um grau maior do que Darwin e Marx. Seus ensinamentos revolucionaram a concepção que as grandes massas tinham sobre o mundo. Por décadas seus nomes estiveram na boca de todo o mundo e seus ensinamentos se tornaram o ponto central das lutas intelectuais que acompanham as lutas sociais de hoje.

Edições Redelp: Essa é a razão pela qual escreveu sobre esse tema? Essas concepções não são extremamente diferentes uma da outra? Uma não é biológica e a outra sociológica ou econômica? Elas ainda teriam importância hoje?

Anton Pannekoek: A importância científica do marxismo assim como do darwinismo consiste em sua filiação à teoria da evolução, pertencendo o darwinismo ao campo de análise do mundo orgânico, das coisas animadas, vivas, da natureza; e o marxismo ao campo da sociedade. Esta teoria da evolução, entretanto, de modo algum era nova, pois já tinha sido defendida antes de Darwin e Marx. Hegel, o filósofo, a fez mesmo o ponto central de sua filosofia. É, portanto, necessário observar mais de perto quais as realizações de Darwin e de Marx neste campo.

Que o marxismo deve sua importância e posição somente pelo papel que cumpre na luta do proletariado, todos sabem. Com o darwinismo, entretanto, as coisas parecem diferentes para o observador superficial, pelo fato de o darwinismo lidar com uma nova verdade científica, que luta contra os preconceitos religiosos e a ignorância.

Edições Redelp: Alguns autores que se dizem marxistas afirmam que existe uma continuidade e até complementação entre marxismo e darwinismo. Outros, no entanto, afirmam que são concepções antagônicas. Há também aqueles que dizem que possuem elementos convergentes e divergentes, sendo uma conciliação entre as duas anteriores. Como se posiciona diante disso?

Anton Pannekoek:
O marxismo é uma nova maneira de olhar o passado e o futuro...
é uma revolução espiritual.
Anton Pannekoek: Se nos voltarmos para o marxismo, imediatamente veremos uma grande conformidade com o darwinismo. Tal como no caso de Darwin, a importância científica da obra de Marx consiste em que ele descobriu a força propulsora, a causa do desenvolvimento social. Não teve que provar que tal desenvolvimento ocorria; todos sabiam que desde os tempos mais primitivos, novas ordens sociais sempre suplantaram as velhas formas, mas as causas e objetivos deste desenvolvimento eram desconhecidos. Assim, ambos ensinamentos, os de Darwin e os de Marx, um no campo do mundo orgânico e o outro sobre o âmbito da sociedade humana, elevaram a teoria da evolução para uma ciência positiva. Que o marxismo deve sua importância e posição somente pelo papel que cumpre na luta do proletariado, todos sabem. Com o darwinismo, entretanto, as coisas parecem diferentes para o observador superficial, pelo fato de o darwinismo lidar com uma nova verdade científica, que luta contra os preconceitos religiosos e a ignorância. Todavia não é difícil ver que, na realidade, o darwinismo se submeteu às mesmas experiências que o marxismo. O darwinismo serviu como um instrumento para a burguesia em sua luta contra a classe feudal, contra a nobreza, os direitos do clero e dos senhores feudais. A teoria de Darwin de que o homem descendeu de um animal mais primitivo destruiu todo o fundamento do dogma cristão. É por essa razão que tão logo o darwinismo apareceu, a burguesia o agarrou com grande entusiasmo. O darwinismo prestou um serviço inestimável à burguesia na sua luta contra os velhos poderes. Foi, portanto, apenas natural que os burgueses devessem aplicá–lo contra seus futuros inimigos, os proletários [...]. Tão logo o darwinismo apareceu, a vanguarda do proletariado, os socialistas, saudaram a teoria darwinista, porque viam no darwinismo uma confirmação que completava sua própria teoria; não como alguns oponentes superficiais acreditavam, que queriam basear o socialismo no darwinismo, mas no sentido em que a descoberta darwinista – de que mesmo no aparentemente estagnante mundo orgânico há um contínuo desenvolvimento – é uma gloriosa confirmação que completa a teoria marxista do desenvolvimento social.

Todavia não é difícil ver que, na realidade, o darwinismo se submeteu às mesmas experiências que o marxismo. O darwinismo serviu como um instrumento para a burguesia em sua luta contra a classe feudal, contra a nobreza, os direitos do clero e dos senhores feudais.

Edições Redelp: O que explica o sucesso e hegemonia do darwinismo é a sua adequação aos interesses da classe capitalista. E o que explica o sucesso relativo do marxismo (especialmente quando as crises e lutas sociais se ampliam)?

Anton Pannekoek: Embora seja verdade que para uma teoria ter uma influência duradoura sobre a mente humana, ela deve ter um alto valor, isso não é suficiente. Aconteceu muitas vezes que uma teoria científica da maior importância para a ciência não desperta interesse, exceto alguns homens instruídos. Tal foi o caso, por exemplo, da teoria da gravitação universal de Newton. Esta teoria é a base da astronomia, e é graças a essa teoria que conhecemos as estrelas e podemos prever a chegada de certos planetas e eclipses. No entanto, quando a teoria da gravitação universal de Newton apareceu, apenas alguns cientistas ingleses aderiram a ela. As grandes massas não prestaram atenção a essa teoria. Só era conhecido pelas massas através de um livro popular de Voltaire, escrito meio século depois. Não há nada de surpreendente nisto. A ciência tornou-se uma especialidade para um certo grupo de homens instruídos e seu progresso diz respeito somente a eles, como a fundição é a especialidade do ferreiro e um desenvolvimento na fundição de ferro diz respeito a ele também. Somente aquilo que a massa do povo pode fazer uso e aquilo que é visto por todos como uma necessidade vital, pode ganhar adeptos entre as grandes massas. Quando, então, vemos que uma certa teoria científica causa entusiasmo e paixão nas amplas massas, isto pode ser atribuído ao fato de que esta teoria serve a elas como uma arma na luta de classes. Pois é a luta de classes que envolve quase todo o povo. Isto pode ser visto mais claramente no marxismo. Se os ensinamentos econômicos do marxismo não tivessem importância na moderna luta de classes, apenas poucos economistas profissionais gastariam tempo os estudando. No entanto, devido ao fato de que o marxismo serve como arma aos proletários na luta contra o capitalismo, é que as lutas científicas estão centradas nesta teoria. É devido ao serviço que Marx presta que seu nome é honrado por milhões de pessoas que conhecem muito pouco de seus ensinamentos e, por outro lado, é desprezado por milhares que não entendem nada de sua teoria. É pelo grande papel que cumpre a teoria marxista na luta de classes que é diligentemente estudada pelas amplas massas e domina a mente humana.

Edições Redelp: A aplicação da ideia darwinista de luta pela sobrevivência e competição à sociedade não significaria que a luta proletária e a ideia marxista de unidade dessa classe (“proletários de todo o mundo, uni-vos”, afirmou Marx no Manifesto Comunista), bem como a ideia de socialismo, seriam ilusórias?

Anton Pannekoek: As organizações da classe operária começam com o término da competição existente entre operários e combinando seus poderes separados em um grande poder em sua luta com o mundo externo. Tudo que se aplica aos grupos sociais também se aplica a essa organização de classe, trazida por condições naturais. Nas fileiras dessa organização de classe, causas sociais, sentimentos morais, autossacrifício e devoção do corpo inteiro se desenvolvem de uma maneira mais esplêndida. Essa organização sólida dá à classe trabalhadora a grande força que ela necessita para derrotar a classe capitalista. A luta da classe, que não é uma luta com instrumentos, mas para a posse dos instrumentos, uma luta pelo direito de comandar a indústria, será determinada pela força da organização de classe. Dentro dessa comunidade a luta mútua entre membros cessará e prosseguirá contra o mundo exterior. Não será mais uma luta contra nossa própria espécie, mas uma luta para subsistência, uma luta contra a natureza. Aqui um novo curso se abre para o homem: o homem ascendendo do mundo animal e prosseguindo sua luta pela sobrevivência pelo uso dos instrumentos cessa, e um novo capítulo na história da humanidade se inicia.

Só uma sociedade de produtores livres, capazes de apreciarem a importância das realizações espirituais, e desejosos de as porem em prática para o bem-estar comum, poderá reconhecer e apreciar o gênio criador na sua real medida.


Edições Redelp: A discussão sobre darwinismo é muitas vezes dificultada pela idolatria de Darwin, que os espíritos ingênuos endeusam e o consideram acima da crítica. Outros se apegam às suas ideias por acreditarem que ele é a confirmação da ciência ou a única concepção de evolução existente. O cientificismo de muitos marxistas se manifesta em alguns debates sobre Darwin ou sobre o darwinismo. Existe entre alguns deles a ideia de que Darwin seria um gênio e, por conseguinte, seria inquestionável. Como são produzidos os gênios intelectuais e qual sua real importância?

Anton Pannekoek: Eminentes teóricos não se cansam de acentuar que todo o progresso humano se deve a um número limitado de gênios. Segundo eles, teria sido um pequeno número de investigadores, de inventores, de pensadores a edificar a ciência, a aperfeiçoar a técnica, a conceber ideias novas, a abrir novos caminhos, enquanto a massa dos seus concidadãos se teria limitado a segui-los e a imitá-los. Toda a civilização assentaria neste punhado de cérebros eminentes. O futuro da humanidade e o progresso da civilização dependeriam, pois, da educação e seleção de tais elites, e estas se veriam ameaçadas por um nivelamento geral. Ora esta asserção é falsa. Mesmo o mais simples estudo atento duma descoberta científica, técnica, ou outra qualquer, surpreende pela quantidade de nomes que a ela se encontra associada. Mas nas obras populares, nos manuais de textos históricos, fontes de tantas ideias falsas, apenas alguns grandes nomes são conservados e glorificados, como se essa fosse a única realidade válida. Deste modo foram fabricados, de acordo com as necessidades em questão, alguns gênios excepcionais. Na realidade, qualquer progresso importante e engendrado por todo um ambiente social donde brotam, de todos os lados, novas ideias, sugestões, compressões súbitas. Nenhum destes grandes homens, levados aos píncaros pela história oficial, por terem dado um passo decisivo, teriam podido fazê-lo sem o trabalho dum grande número de precursores, no qual as suas descobertas se baseiam. Além disso, este punhado de homens de talento, louvados séculos mais tarde como iniciadores do progresso mundial, não foram os guias espirituais do seu tempo. Foram frequentemente ignorados pelos seus contemporâneos, trabalharam tranquilamente, isolados do mundo; pertenciam na sua maior parte à classe explorada, tendo sido por vezes mesmo perseguidos pelos dirigentes. Os seus homólogos contemporâneos não são esses irrequietos pretendentes à direção intelectual, mas sim trabalhadores silenciosos, praticamente desconhecidos, quem sabe mesmo, ridicularizados e perseguidos. Só uma sociedade de produtores livres, capazes de apreciarem a importância das realizações espirituais, e desejosos de as porem em prática para o bem-estar comum, poderá reconhecer e apreciar o gênio criador na sua real medida.

O marxismo é uma nova maneira de olhar o passado e o futuro, o significado da vida, o mundo e o pensamento; é uma revolução espiritual, uma nova visão do mundo.

Edições Redelp: O senhor gostaria de acrescentar alguma coisa?

Anton Pannekoek: O materialismo burguês acreditava que, através do conhecimento das leis naturais e de sua aplicação na técnica, o homem poderia dominar seu destino e, assim, também se tornar espiritualmente livre. Mas essa aplicação, o desenvolvimento do capitalismo, deu origem a uma miséria ainda maior e a poderes desconhecidos ainda mais formidáveis. O marxismo explica esses poderes e esclarece os trabalhadores sobre a maneira pela qual os próprios trabalhadores, com a ajuda dessa ciência, pode conquistá-los. O marxismo é uma nova maneira de olhar o passado e o futuro, o significado da vida, o mundo e o pensamento; é uma revolução espiritual, uma nova visão do mundo. No entanto, como visão da vida, o marxismo é real apenas através da classe que a ele adere. Os trabalhadores que estão imbuídos dessa nova perspectiva tornam-se conscientes de si mesmos como a classe do futuro, crescendo em número, força e consciência, esforçando-se por levar a produção para suas próprias mãos e, através da revolução, tornarem-se donos de seu próprio destino. Assim, o marxismo como teoria da revolução proletária é uma realidade e, ao mesmo tempo, uma força viva apenas nas mentes e corações do proletariado revolucionário.






[1] Entrevista montagem é o processo no qual o entrevistador retira elementos da obra do autor no sentido delas se encaixarem nas questões que este gostaria de ver respondidas. Assim, as questões são do entrevistador e as respostas são do entrevistado, mas este não respondeu as questões e sim fez as afirmações em sua obra que respondem às questões levantadas.

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