Pular para o conteúdo principal

A ATUALIDADE DAS CLASSES SOCIAIS: ENTREVISTA COM LUCAS MAIA

 A ATUALIDADE DAS CLASSES SOCIAIS:

ENTREVISTA COM LUCAS MAIA


Edições Redelp


 

Lucas Maia é militante autogestionário, doutor em Geografia e pós-doutor em Sociologia. É professor do Instituto Federal de Goiás – Campus Aparecida de Goiânia. Desenvolve pesquisas sobre a obra de Marx e o marxismo, debatendo a constituição, desenvolvimento e tendências do pensamento marxista. A partir de uma produção intelectual engajada, dedica-se ao estudo de diversos fenômenos políticos como movimentos grevistas, movimentos sociais, movimento operário, Estado, partidos, sindicatos, organizações autônomas, experiências revolucionárias etc., apreendendo-os como modos pelos quais se manifesta a luta de classes. É editor da Revista Enfrentamento e colabora em inúmeros periódicos. Tem vários artigos publicados em revistas, bem como capítulos de livros. É autor dos livros Comunismo de Conselhos e Autogestão Social (Rio de Janeiro: Rizoma Editorial, 2015)) e Nem Partidos, Nem Sindicatos: a Reemergência das Lutas Autônomas no Brasil (Goiânia: Edições Redelp, 2016). Lucas Maia acaba de publicar o livro As Classes Sociais em O Capital. A Edições Enfrentamento realizou uma entrevista com o autor sobre essa obra e outros aspectos relacionados.

 

Edições Redelp: O tema das classes sociais começa a retornar no horizonte de análise da sociologia, pois vem ganhando força novamente em Congressos, eventos, publicações, debates, em várias áreas. Por qual motivo o tema das classes sociais é importante?

Lucas Maia: A importância do tema revela-se, por exemplo, na tentativa de inúmeros ideólogos nas últimas décadas, depois do Maio de 1968, fazerem tanto esforço para dizer que as classes não existem, que a luta de classes acabou, que a classe operária acabou, que agora o movimento político é composto por “novos sujeitos” etc. O problema é que tais ideologias expulsaram o tema das classes socais pelas portas dos fundos, mas a realidade o jogou novamente pelas portas da frente. Trata-se de um problema inescapável dentro de uma sociedade de classes. As próprias ideologias que defenderam seu fim, só esqueceram de um velho postulado, embora sempre atual, de que “não é a consciência que determina a realidade”. Assim, pode-se decretar o fim das classes, mas estas só encontrarão seu obituário a partir da própria luta de classes. Eis, portanto, a importância do estudo deste tema. O destino das classes inferiores (operários, lumpemproletários, trabalhadores dos serviços, comércio etc.) está alicerçado exatamente na dinâmica desta luta de classes. No final das contas, as várias ideologias que decretaram o fim das classes e da luta de classes, esforçavam-se, na verdade, para ofuscar a potencialidade crítica da classe operária. Eis novamente a importância do tema, alçar ao nível da consciência o potencial crítico-revolucionário da classe operária quando se coloca em movimento.

 

O problema é que tais ideologias expulsaram o tema das classes socais pelas portas dos fundos, mas a realidade o jogou novamente pelas portas da frente. Trata-se de um problema inescapável dentro de uma sociedade de classes.

 

Edições Redelp: O que motivou a escrever essa obra?

Lucas Maia: há basicamente duas motivações principais. A primeira é derivada da necessidade de autoformação. Aproveitei a ocasião de tematizar as classes sociais em O Capital para realizar um estudo aprofundado desta obra de Marx (e não somente o Livro I, mas a totalidade da obra). Foi o que realizei. Assim, este objetivo foi cumprido. Um segundo aspecto que me motivou a escrever este livro foi exatamente o conhecimento que eu tinha de outras interpretações da teoria de Marx sobre as classes, as quais eu achava por demais reducionistas e na maioria das vezes equivocadas. Uma das principais deformações que identifiquei a este respeito foi uma tese amplamente divulgada de que em O Capital Marx aborda somente duas classes: classe capitalista e classe operária. Das leituras prévias que tinha a respeito da obra, sabia que isto era falso. Assim, me propus fazer uma leitura sistemática do conjunto de O Capital identificando o modo como a questão das classes sociais é ali apresentado. A conclusão foi, portanto, de que minha hipótese estava correta. As ideologias que reduzem a interpretação de Marx sobre as classes em O Capital estão completamente equivocadas. De fato, a concepção de Marx a este respeito é muito, mas muito mais complexa do que geralmente se diz. E espero que o livro que acabo de publicar tenha provado isto cabalmente.

 

O Capital será sempre uma pedra no sapato dos ideólogos burgueses. Uma obra cuja superação só se concretizará quando o próprio modo de produção capitalista for ele mesmo abolido.


Edições Redelp: Alguns autores afirmam que em O Capital, Marx apresenta apenas duas classes sociais, mas em outras, as chamadas “obras históricas”, ele elenca até 13 classes sociais. Outros autores discordam disso. Esse é o tema do seu livro e por isso foi necessário, explicita ou implicitamente, se posicionar diante desse debate. Qual é a sua posição a respeito do número de classes sociais que aparecem em O Capital.

 

Lucas Maia: Como afirmei anteriormente, a interpretação de Marx sobre as classes sociais é bem mais complexa. E é também completamente equivocado realizar, como muitos fazem, inclusive para justificar sua interpretação reducionista de O Capital, separar a produção de Marx em “obras históricas”, “econômicas”, “políticas”, “filosóficas” etc. Assim, com base nesta má interpretação do pensamento de Marx, afirma-se que em O Capital Marx analisa a “estrutura” da sociedade capitalista e ali ele encontra então a classe capitalista e a classe operária. Nas obras históricas e políticas, ele analisaria “conjunturas” e aí seria possível e também necessário identificar outras classes sociais. Esta é uma interpretação equivocada de Marx, pois nas ditas obras “históricas” ou “políticas”, a discussão sobre o modo de produção não desaparece, pelo contrário, é pressuposto. Da mesma forma, também na análise do modo de produção, ou seja, em O Capital, várias outras classes vão sendo alinhadas à medida que o argumento de Marx vai se consolidando. Certamente que burguesia e proletariado se destacam no conjunto da análise, pois o tema de O Capital é o modo de produção capitalista (e não a sociedade capitalista). Para desvendar a essência deste modo de produção, ou seja, o processo de produção de mais-valor, é necessário identificar, analisar, compreender as relações recíprocas entre estas duas classes. Pois é desta relação que o mais-valor emerge. Contudo, à medida que Marx, em acordo com o método dialético, vai realizando sucessivas concreções, as outras classes vão se apresentando. Por isto a necessidade de se analisá-las. Aparecem então os latifundiários, os manangers ou gerentes (a burocracia das empresas capitalistas), os artesãos, camponeses, a classes serviçal (trabalhadores domésticos), trabalhadores do comércio, classes de modos de produção pretéritos (escravos, senhores de escravos, servos, senhores feudais) etc. Uma atenta leitura de O Capital tem de identificar estas classes. Mas mais do que identificar tais classes, Marx realiza também uma discussão sobre fracções de classes, como processos derivados da própria divisão social trabalho, processo este que está na base do surgimento de todas as classes. Assim, a classe capitalista se divide em algumas frações: burguesia industrial, banqueiros, comerciantes etc. os proletários também se dividem: trabalhadores da indústria, das minas, operários agrícolas, da construção civil etc. Tendo isto em vista, esforço-me por demonstrar como todas estas classes estão envolvidas na constituição e desenvolvimento do modo de produção capitalista. Marx, portanto, é um pensador complexo e reduzi-lo significa unicamente deformar seu pensamento. Além de ser complexo, é também um pensador radical e a radicalidade de sua discussão sobre as classes sociais em O Capital (e também em outras obras) aponta para necessidade/possiblidade de abolição de todas as classes. Eis uma importante motivação de ideólogos em tornar o pensamento de Marx uma mera caricatura. Ao se fazer isto, torna-o algo simples de ser criticado e descartado. Contudo, o acerto das análises de Marx sempre se afirma no longo prazo e as ideologias são superadas. O pensamento de Marx, porém, permanece, é revigorado, revitalizado, atualizado, fortalecido. O Capital será sempre uma pedra no sapato dos ideólogos burgueses. Uma obra cuja superação só se concretizará quando o próprio modo de produção capitalista for ele mesmo abolido.





"Intelectualmente, hoje, sou mais um apátrida do que um nacionalista da Geografia. Por isto, olho esta ciência particular tanto de dentro, quanto de fora".






Edições Redelp: Você atribuiria a qual motivo essa interpretação da existência de apenas duas classes em O Capital?

Lucas Maia: Creio que são várias as determinações que explicam isto. Uma que, imediatamente se apresenta, é o processo de má leitura e leitura reducionista da obra. Assim, geralmente este mau intérprete se limita ao estudo do livro 1 de O Capital (e pior ainda, de fragmentos deste livro), onde a relação entre classe capitalista e classe operária é analisada extensivamente e profundamente. Assim, o leitor mais superficial acaba por se convencer de que Marx só identifica estas duas classes. Contudo, isto é equivocado, pois já no Livro I, ele discute outras classes além destas duas. Um outro elemento que se poderia citar é a própria complexidade da obra, sua extensão e os esforços que se exigem do leitor que se coloca a interpretá-lo. Aí, alguns intérpretes também se perdem e não conseguem apreender toda a complexidade da obra. Certamente, estas explicações não podem convencer, pois há leitores de Marx de considerável gabarito intelectual e que reproduzem equívocos como este. Assim, creio que a determinação fundamental para uma leitura tão errada de O Capital alicerça-se naquilo que apresentei antes: tornar O Capital (e toda a obra de Marx) uma mera caricatura. Criticar algo que é simplificado é mais fácil do que criticar algo complexo. Se se interpreta corretamente o pensamento de Marx, tem-se que reconhecer sua complexidade e profundidade. Se se transforma sua obra numa mera caricatura, fica mais fácil a crítica. Assim, é possível descartar O Capital porque ele não analisa a sociedade capitalista (e suas classes sociais) em sua inteireza. Nesta caricatura, O Capital não é um texto que dá conta da realidade, assim, tem que ser descartado. E neste particular, a coisa é ainda mais engraçada, pois Weber, Durkheim, Freud etc. tem que ser atualizados, melhorados, enriquecidos etc. Já Marx, este tem que ser descartado. Isto revela a essência do processo de deformação (e simplificação reducionista) e, portanto, pseudocrítica da obra de Marx.


Edições Redelp: Olhando sua biografia, observamos que sua formação é eminentemente em Geografia, com um pós-Doutorado mais recente em Sociologia. Qual é a importância da temática das classes sociais na Geografia? Existem reflexões geográficas sobre classes sociais?

Lucas Maia: Para utilizar uma linguagem cara à Geografia, meu território de origem é a ciência geográfica, além de exercer minha atividade profissional nesta área. Portanto, sou um geógrafo. Também, em minha caminhada, tive contato com outras áreas, outros conhecimentos e acabei gostando de ir além das fronteiras. Intelectualmente, hoje, sou mais um apátrida do que um nacionalista da Geografia. Por isto, olho esta ciência particular tanto de dentro, quanto de fora. Gosto deste olhar em perspectiva. Diante disto, como foco analítico, as classes sociais são, na Geografia, uma espécie de “tema transversal”. Em si mesmas, por si mesmas, as classes não se tornam “objeto de estudo” da Geografia. Contudo, ao desenvolverem suas pesquisas, os geógrafos se utilizam de uma ou outra concepção de classe social em seus trabalhos, pois, como disse, as classes são uma questão inescapável. Pode-se até querer expulsá-la da sala de estar, mas ela retorna sempre e sempre. Deste modo, alguns autores, na Geografia, ao se utilizar de uma ou outra concepção de classe social, interpretam o fenômeno em análise (a partir da espacialidade deste fenômeno), identificando ali como as classes existem, se comportam, se relacionam etc. As classes, pois, estão presentes nas análises realizadas por inúmeros geógrafos, mas desconheço uma interpretação particular, de algum geógrafo, sobre este tema, que tenha levado a desenvolvimentos particulares sobre esta questão. Onde o conceito de classes, luta de classes, transformação social etc. ficou mais evidente, dentro da Geografia, foi na corrente conhecida como Geografia Crítica ou Geografia Radical, como é conhecida nos EUA, sobretudo após a década de 1970,  (que recebeu influências do marxismo, mas de outras formas de pensamento também, bolchevismo, anarquismo, estruturalismo-“marxista” etc.). Entretanto, escapa-me à memória (e aqui posso estar sendo injusto), autores que realizaram uma discussão particular, independente sobre as classes sociais no capitalismo. Pelo que conheço, é mais comum tomar empréstimo discussões de outros lugares, como alguns elementos da sociologia, do marxismo, do bolchevismo etc. E com estas discussões em mãos, realiza-se análises de determinados fenômenos, sempre compreendendo como tais fenômenos e as classes se realizam em sua dinâmica espacial. E como ocorreu em todos os campos do conhecimento, os vários discursos que afirmavam o fim das classes, da luta de classes, do movimento operário etc. também se desenvolveram na Geografia. A ideia de novos sujeitos (ou seja, os movimentos sociais) que vinham em substituição ao velho movimento operário também ocorreu na Ciência Geográfica. Sob o nome de Geografia Cultural, esta tendência se tornou presente na geografia brasileira, em certa medida contemporânea da Geografia Crítica, mas se tornando mais importante a partir de finais da década de 1990. Eu diria, então, para concluir, que as classes sociais estão sempre presentes nas pesquisas geográficas (de maneira intencional ou inintencional). Como objeto particular de estudo, desenvolvendo concepções próprias, eu desconheço pesquisas neste sentido. A chamada Geografia Crítica (mas já no final do século 19 e início do 20, o pensamento de Reclus e Kropotkin) tematizam de modo mais direto o problema da dimensão espacial da sociedade e sua relação com as classes sociais. Após a hegemonia do pós-estruturalismo, entra também na Geografia estas ideologias que questionam a própria existência das classes e das lutas de classes.


Marx é sem dúvida o mais profundo intérprete da sociedade moderna, ou seja, da sociedade capitalista. Suas teses são enraizadas tão profundamente nos elementos mais dramáticos desta sociedade, que a cada mínimo abalo, tanto detratores quanto defensores de Marx se colocam no palco político advogando a atualidade ou descartabilidade de suas concepções.


Edições Redelp: Marx é um autor que muitos dizem estar superado, enquanto que outros defendem a sua atualidade e alguns, até mesmo, afirmam ser o pensador mais importante e que fornece as bases intelectuais para compreender a sociedade contemporânea. A sua obra é sobre a concepção de classes sociais em O Capital, obra de Karl Marx. Como você pensa a posição de Marx na cultura contemporânea?

Lucas Maia: Marx é sem dúvida o mais profundo intérprete da sociedade moderna, ou seja, da sociedade capitalista. Suas teses são enraizadas tão profundamente nos elementos mais dramáticos desta sociedade, que a cada mínimo abalo, tanto detratores quanto defensores de Marx se colocam no palco político advogando a atualidade ou descartabilidade de suas concepções. E o que explica isto? Não pode ser outra coisa senão a própria luta de classes. Certamente, é a luta de classes cotidiana (e radicalizada) o elemento fundamental do modo de produção capitalista. É a luta em torno do processo de extração de mais-valor a essência da sociedade moderna, aquilo que a individualiza em relação a todas as demais. Portanto, a determinação fundamental da luta de classes está aí. Contudo, nem as classes se restringem ao modo de produção, nem muito menos a luta de classe se limita ao processo produtivo. Ela se estende para toda a sociedade, inclusive e fundamentalmente à cultura. É por isto que a disputa em torno do pensamento revolucionário de Marx não é algo gratuito ou de menor importância. É parte da luta de classes, é a luta de classes manifestada na cultura. Marx tinha consciência disto e dedicou a maior parte de sua vida à elaboração de uma teoria, que segundo cartas que ele enviava a Engels, “é o nosso projeto comum”. Este projeto comum era a emancipação humana. E tal emancipação ocorre via revolução proletária. Veja, portanto, que sua produção intelectual não está acima da luta de classes, é parte dela e ele queria contribuir com o movimento revolucionário ao elaborar suas teses. O Capital é isto, a crítica revolucionária do modo de produção capitalista. Nesta obra, está dissecado o processo de exploração que constitui o mundo moderno. E esta conclusão de Marx é insuperável, prova disto é que ele é sempre requisitado, seja por detratores, deformadores,  continuadores etc. Ou seja, o que explica a luta em torno das teses de Marx é a luta de classes.

Edições Redelp: O seu foco é as classes sociais em O Capital. Existem outras obras de Marx em que ele discute classes sociais?

Lucas Maia: Sim, há mais obras. Centrei minha atenção em O Capital, exatamente porque é uma das obras mais vilipendiadas no que respeita a esta questão. Contudo, teses desenvolvidas em O Capital já estão presentes em obras muito anteriores. Já bem cedo em seu horizonte intelectual, esta questão se coloca para ele. Por exemplo, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (publicada somente no século 20), bem como na Introdução a esta crítica (já publicada em 1843), Marx discute concretamente o problema das classes sociais, bem como a que questão da revolução proletária. Basta ver a discussão que ele apresenta sobre a burocracia estatal (no texto publicado postumamente) ou da análise que ele desenvolve sobre o “ser do proletariado”, tal como se vê na Introdução. Mas, por exemplo, em a Ideologia Alemã, ele e Engels realizam toda uma discussão sobre o que é classe social, sobre a divisão social do trabalho, que é a base sobre a qual as classes se formam, sobre a ideia de que as classes, produto da divisão do trabalho, desenvolvem modo de vida, formas de consciência específicas etc. Assim, desde esta época, pode-se dizer que os elementos fundamentais para uma teoria das classes sociais já estavam elaborados, embora, diríamos, a síntese geral ainda não estive completa. E Marx não conseguiu nunca realizá-la. Prova disto é que há um capítulo de O Capital, iniciado, mas somente com três páginas, com o seguinte título: “As Classes”. Sendo O Capital uma obra inacabada, este é um capítulo que lamentavelmente não chegou a ser concluído. Mas além destas discussões mais teóricas sobre as classes, há também inúmeros trabalhos do autor abordando a dinâmica da luta de classes em momentos históricos específicos. Assim, seus textos sobre a revolução de 1848 (A Luta de Classes na França), sua análise sobre a Comuna de Paris (A Guerra Civil na França), textos nos quais ele aborda as classes em seus relacionamentos recíprocos, demonstrando a validade da tese já presente no Manifesto Comunista de 1848, ou seja, de que a história das sociedades tem sido a história da luta de classes. Ou também, textos, como, por exemplo, O 18 Brumário, no qual demonstra que a explicação para um indivíduo tão medíocre como Luiz Napoleão III chegar ao poder é a própria dinâmica concreta da relação e luta de classes estabelecida em Franca à época. Assim, isto demonstra que a concepção de Marx sobre as classes é ampla, complexa, perpassa vários momentos de sua produção e, no final das contas, é a determinação fundamental de seu pensamento. A radicalidade da teoria de Marx encontra seu baluarte exatamente na ação concreta da classe operária. É no movimento político desta classe, que encontramos, tal como afirmou um eminente marxista da primeira metade do século 20, Karl Korsch, o “marxismo é a expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado”. Ou seja, um desenvolvimento teórico da tese já exposta por Marx nos Preâmbulos dos Estatutos Provisórios da Associação Internacional do Trabalhadores: “A emancipação da classe operária deve ser obra da própria classe operária”. A expressão teórica deste processo de emancipação é o marxismo.

 

Marx, portanto, é um pensador complexo e reduzi-lo significa unicamente deformar seu pensamento. Além de ser complexo, é também um pensador radical e a radicalidade de sua discussão sobre as classes sociais em O Capital (e também em outras obras) aponta para necessidade/possiblidade de abolição de todas as classes. Eis uma importante motivação de ideólogos em tornar o pensamento de Marx uma mera caricatura. Ao se fazer isto, torna-o algo simples de ser criticado e descartado. Contudo, o acerto das análises de Marx sempre se afirma no longo prazo e as ideologias são superadas.

 

Edições Redelp: Além de Marx, quais são os autores que discutem classes sociais seguindo a sua perspectiva?

Lucas Maia: Sem dúvidas há, mas infelizmente são minoritários e marginalizados, tal como é o próprio pensamento de Marx (o autêntico e não o deformado e caricaturado). As Classes Sociais em O Capital foi publicado, pela primeira vez, em 2011. No ano de 2010, cursei a disciplina “Sociologia das Classes Sociais”, ministrada por Nildo Viana, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFG. Com base nas discussões e no encadeamento das reflexões durante as aulas, veio-me a ideia de realizar esta pesquisa. Poderíamos dizer, portanto, que a abordagem “metodológica” no estudo da obra de Marx foi adquirida durante esta disciplina. Só mais tarde descobri, pois um ano após eu publicar meu texto, Nildo Viana publicou seu livro A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx. As reflexões das aulas já eram produto deste livro, que já estava pronto, mas não publicado. Como se pode ver, um autor que muito influenciou minha abordagem foi Nildo Viana. Suas teses são, na verdade, a base de nossa argumentação. Ressalvando-se, obviamente, que a responsabilidade pela pesquisa e escrita de As Classes Sociais em O Capital é inteiramente minha. Contudo, posteriormente, outros trabalhos vieram a lume e expressam esta mesma discussão, mas abordando outros aspectos e focalizando algumas classes em específico. Por exemplo, as pesquisas de Lisandro Braga sobre o lumpemproletariado, de Edmilson Marques e Erisvaldo Souza sobre intelectualidade, de Rubens Vinícius sobre campesinato (mesmo que de forma indireta, tendo em vista que sua pesquisa destinava-se ao estudo do MST), de vários destes autores já citados sobre burocracia, de José Santana da Silva sobre burocracia sindical etc. Isto insinua que existe um conjunto de autores que vem abordando a questão das classes partindo da perspectiva que desenvolvi em meu livro. Certamente fui injusto aqui com relação aos nomes, pois há mais. Contudo, estes citados são suficientes para demonstrar que não caminho sozinho no que toca a esta questão. Essas são as pesquisas mais contemporâneas. Há, contudo, alguns autores, continuadores do pensamento de Marx, que tematizaram algumas classes sociais. Por exemplo, o Comunismo de Conselhos (Pannekoek, Rühle, Mattick, Korsch etc.), da segunda metade da década de 1920 em diante vão realizar importantes pesquisas sobre a burocracia, tematizando sobretudo a burocracia partidária e sindical (frações de classe que Marx não analisa, pois ainda eram muito embrionárias em seu tempo). Também, a partir da década de 1960 em diante, a constituição do marxismo autogestionário dá importantes contribuições ao estudo das classes sociais, novamente dando destaque para a questão da burocracia. Apesar de haver, por exemplo em Alain Guillerm e Yvon Bourdet, uma incompreensão do conceito de classe operária. No caso brasileiro, as pesquisas de Maurício Tragtenberg a partir da década de 1970 traz alguns aportes ao estudo do fenômeno burocrático (apesar de a influência de Weber prejudicar algumas de suas conclusões). E como já apontei antes, as contribuições contemporâneas de vários autores, sobretudo a partir das conclusões de Nildo Viana em seu estudo sobre a teoria de Marx a respeito das classes sociais. Assim, dirá que este As Classes Sociais em O Capital, é mais uma contribuição, dentro desta tradição de autores, a desvendar o fenômeno das classes sociais no capitalismo.


Edições Redelp: E quais seriam os autores que disputariam com Marx no sentido de apresentar outras concepções concorrentes de classes sociais?

Lucas Maia: As classes sociais e suas relações (de aliança, conflito) são uma realidade concreta. Elas existem independentemente de a consciência tê-la ou não identificado e compreendido. É por isto que ao longo da história, todos os grandes pensadores se debruçaram sobre este problema. Por exemplo, Aristóteles realiza toda uma discussão filosófica sobre as classes e seu lugar na sociedade. Sua abordagem é problemática, pois ele naturalizava sua sociedade e, portanto, as relações de escravidão e as classes que compunham aquela sociedade. Isto se reproduz no feudalismo também, e a discussão sobre as três classes (clero, nobreza, servos) expressa isto. Da mesma forma, também esta concepção de classes é estática e naturaliza a existência delas. Disto podemos facilmente inferir que a percepção das classes socais não é um fenômeno fácil de ser compreendido. Hoje consideramos absurda a máxima de Aristóteles segundo a qual a escravidão é natural, ou de que uns nascem para rezar, outros para lutar, outros para trabalhar, tal como era a máxima no feudalismo. Os pensadores que se dedicam ao estudo do fenômeno das classes sociais (ou qualquer outro problema social), ao naturalizarem a sociedade em que vivem, naturalizam também as classes e relações de classe que constituem tal sociedade. Isto os impede de compreender corretamente o fenômeno. E os intelectuais, sob o modo de produção capitalista (economistas, sociólogos etc.), fazem o mesmo que fez Aristóteles, naturalizam as relações de classe de sua sociedade. Esta é a base da superioridade de todo o pensamento de Marx em relação aos ideólogos burgueses. Marx concebe os processos sociais como sendo historicamente determinados, socialmente constituídos. E todos são passíveis de mudança. É por isto que Marx pode vislumbrar uma sociedade sem classes, enquanto os economistas, com quem ele dialogava, eram incapazes disto. Assim, como as classes sociais são um fenômeno real, concreto, ao ser expressa na consciência, pode sê-lo de modo correto, como no caso de Marx e de alguns marxistas posteriores, ou incorreto, como é comum em todas as ideologias. Por exemplo, a distinção da sociedade em classe alta, média e baixa ou então as classificações alfabéticas: classes A, B, C, D etc. São todas classificações arbitrárias e podem mudar de acordo os critérios do pesquisador em questão. Embora estas denominações sejam hegemônicas, são as mais precárias de todas. No final das contas, não expressam classe social nenhuma. É uma mera classificação e geralmente são baseadas em diferenças de renda, mas também status etc. O bolchevismo também apresenta uma concepção de classe social extremamente precária. A rigor fundamentada numa incompreensão da discussão de Marx sobre isto. Definem as classes sociais tendo em vista o modo de produção e por isto sua leitura é economicista. Percebem a burguesia, o proletariado, devido ao caso russo, o campesinato e os estratos que compunha esta classe na Rússia durante a gestação do bolchevismo. Para além daí, há uma dificuldade de compreensão das classes sociais, chegando, por exemplo, a casos como o de Trotsky, que não considerava a burocracia uma classe social, mas sim uma camada social. Claro que esta leitura está associada aos interesses da própria burocracia. Se a Rússia era um país comunista, então não poderia haver uma classe dominante ali. No máximo, havia esta camada social, que não é uma classe social. A complexificação das análises varia com a qualidade dos casos individuais. Assim, Gramsci (embora não seja um bolchevique stricto senso) traz a discussão sobre a classe intelectual, embora ele não utilize esta expressão etc. Mas de qualquer forma, a interpretação bolchevista das classes sociais é bem pobre e problemática. Há também um conjunto de autores vinculados à Sociologia que também se debruçaram sobre este tema. Via de regra, gastam muitas páginas a criticar Marx e geralmente o que eles criticam é exatamente a caricatura que já expus anteriormente. Regra geral domina, nesta sociologia das classes sociais uma total incompreensão da teoria de Marx das classes sociais. Assim, autores como Gurvitch, Aron, Dahrendorf etc. realizam este tipo de procedimento. Todos incorrem neste erro. Criticam a caricatura de Marx e ao apresentarem suas interpretações, que seriam alternativas superiores, via de regra, caem em classificações arbitrárias e reducionismos incongruentes com a realidade. Assim, estes supostos críticos estão muito aquém do que é criticado (ou seja, Marx).


Esta é a base da superioridade de todo o pensamento de Marx em relação aos ideólogos burgueses. Marx concebe os processos sociais como sendo historicamente determinados, socialmente constituídos. E todos são passíveis de mudança. É por isto que Marx pode vislumbrar uma sociedade sem classes,


Edições Redelp: Você termina seu livro não com uma conclusão, mas com algumas “teses para uma teoria das classes sociais”, por que proceder assim?

Lucas Maia: Exatamente porque, ao chegar ao final da pesquisa, descobri que estava no início da caminhada. As teses são, pois, hipóteses de trabalho para serem desenvolvidas. Ali está colocada a necessidade de uma definição correta das classes sociais e quais são os pressupostos para se fazer isto (a obra de Nildo Viana sobre as classes já citada realiza isto com rigor); também, coloca-se a necessidade de ir além de Marx e das classes que ele identifica em seu tempo; uma teoria das classes sociais, para compreender o capitalismo contemporâneo, tem que dedicar muito mais tempo ao estudo da burocracia, dada a amplitude, poder e importância que esta classe adquiriu no século 20 e permanece, com modificações, no século 21; também, uma teoria das classes sociais deve pensar o processo revolucionário e isto não está feito de modo extensivo em meu livro. Por estas razões, termino o livro apresentando a necessidade de ampliar as pesquisas sobre este tema, o que vem sendo feito por alguns dos autores que citei antes.

 

 Sobre o livro As Classes Sociais em O Capital, clique aqui.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FEMINISMO E IDEOLOGIA - ENTREVISTA COM JACIARA VEIGA

FEMINISMO E IDEOLOGIA ENTREVISTA COM JACIARA VEIGA EDIÇÕES REDELP     Jaciara Veiga é socióloga e pesquisadora do movimento feminino e feminismo. É graduada em Ciências Sociais e mestre em sociologia pela Universidade Federal de Goiás; Doutoranda em Sociologia pela UFPR – Universidade Federal do Paraná. Jaciara Veiga é autora do livro O Significado do Feminismo – Movimento Feminino e Ideologia (Goiânia: Edições Redelp, 2022). Ela nos concedeu uma entrevista sobre esta obra e questões correlatas visando trazer esclarecimentos a respeito da questão do movimento feminino e do feminismo, esclarecendo o significado do feminismo no desenvolvimento da luta das mulheres por sua libertação.   Edições Redelp: Qual foi o seu objetivo ao lançar essa obra na atualidade?   Jaciara Veiga: Eu já me interessava por questões relacionadas às mulheres e suas lutas, desde a graduação. Sempre que possível abordava a temática acerca das mulheres em minhas pesquisas. O curioso era perceber

A CRÍTICA RADICAL DE MARX AO ESTADO, PARTIDOS E SINDICATOS ENTREVISTA COM MATHEUS ALMEIDA E RUBENS VINICIUS DA SILVA

  A CRÍTICA RADICAL DE MARX AO ESTADO, PARTIDOS E SINDICATOS   ENTREVISTA COM MATHEUS ALMEIDA E RUBENS VINICIUS DA SILVA   EDIÇÕES REDELP     Matheus Almeida é pesquisador, antropólogo e militante autogestionário; É Graduado em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Mestre em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutorando em Antropologia pela USP. Escreveu vários artigos sobre antropologia, marxismo, questão do Estado e outros temas. Rubens Vinicius da Silva é pesquisador, sociólogo e Militante Autogestionário; é Graduado em Ciências Sociais pela FURB/SC; Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Escreveu vários artigos sobre Marxismo, partidos políticos e diversos outros temas.   Rubens Vinicius da Silva e Matheus Almeida são os organizadores da obra Marx: Estado, Partidos e

Livro tematiza a questão da organização em Anton Pannekoek

A Questão da Organização em Anton Pannekoek - novo lançamento da Edições Redelp! Título: A Questão da Organização em Anton Pannekoek. Organizadores: Lisandro Braga; Nildo Viana. Autores: Edmilson Marques, Lisandro Braga, Lucas Maia, Nildo Viana, Renato Dias de Souza. Editora: Edições Redelp Edição: 01 Ano: 2020 ISBN: 978-65-86705-13-3 SINOPSE: Pannekoek, astrônomo reconhecido mundialmente, Anton Pannekoek foi um dos grandes teóricos da tendência conhecida como “comunismo de conselhos”, ao lado de Herman Gorter, Paul Mattick, Karl Korsch, Helmutt Wagner, Otto Rühle, entre outros. O presente livro focaliza uma de suas principais contribuições para o pensamento marxista e a teoria política: a questão da organização. Assim, os autores da presente coletânea apresentam não apenas uma discussão geral sobre a sua abordagem das organizações como também abordam a sua análise dos sindicatos, partidos políticos e conselhos operários. Essa é uma obra, por conseguinte, fundamental para entender o pe