ETNIA
E MOVIMENTOS SOCIAIS EM MOÇAMBIQUE
ENTREVISTA
COM ÓSCAR NAMUHOLOPA
EDIÇÕES
REDELP
Edições
Redelp: Qual foi a sua intenção em tematizar e
publicar uma obra sobre as relações étnicas em Moçambique e a formação do
Mociza?
Óscar Namuholopa:
Moçambique é um país pluriétnico, cuja convivência pacífica é aparente. Grupos étnicos há que reivindicam o seu
afastamento dos círculos de tomada de decisão. Assistiu-se então, após a
promulgação da segunda República em 1990 que permitiu a liberdade de
associação, reunião e de manifestação, antes limitadas por lei desde a
independência em 1975, uma corrida na constituição de movimentos de viés
étnico. O Mociza surge nesse contexto, como primeiro movimento na sociedade
civil e que inspirou tantas outras organizações e, por conseguinte, pouco
estudado. Portanto, a minha intenção ao propor esta temática visava buscar
compreender as diversas determinações que contribuíram para a formação do
Mociza e analisar as suas ações concretas na emancipação social e defesa dos
interesses coletivos da população da Zambézia
Edições
Redelp: O Mociza não é muito conhecido no
Brasil e outros países de idioma português. Poderia dizer, sinteticamente, o
que é o Mociza?
Óscar
Namuholopa: O Mociza é a designação abreviada de
Movimento Cívico de Solidariedade e Apoio ao Desenvolvimento da Zambézia. A
Zambézia é uma província do Centro de Moçambique. Portanto, as relações sociais
desenvolvidas na primeira República (1975-1990) e os efeitos do conflito armado
que se seguiu à independência, levaram à população da Zambézia a compreender a
sua realidade social concreta e, por conseguinte, o despertar da consciência
étnica e senso de pertencimento, o que levou à formação de
uma organização que falasse em nome dela, em defesa dos seus mais altos
interesses. Os seus objetivos centram-se, principalmente, na defesa dos
direitos do cidadão e de cidadania, promoção do desenvolvimento socioeconômico
e territorial da Zambézia. À época da sua formação, tinha também em vista a
reconstituição do tecido social que pela guerra encontrava-se desagregado. O
Mociza é uma ramificação do movimento social de caráter étnico, que assume uma
forma de organização mobilizadora. Ele é pluriétnico pelo fato do grupo que o
sustenta ser constituído por vários grupos étnicos da Província da Zambézia. Os
seus objetivos são amplos, por compreenderem várias situações da sua população.
O Mociza é uma ramificação do movimento social de caráter
étnico, que assume uma forma de organização mobilizadora. Ele é pluriétnico
pelo fato do grupo que o sustenta ser constituído por vários grupos étnicos da
Província da Zambézia. Os seus objetivos são amplos, por compreenderem várias
situações da sua população.
Edições
Redelp: A questão da etnia é bastante
trabalhada na antropologia e em outras áreas. Qual o significado de estudar as
etnias em Moçambique? Os movimentos étnicos são influentes nesse país?
Óscar
Namuholopa: Como disse, Moçambique é constituído
por várias etnias. O seu estudo é muito importante para compreender a dinâmica
social desenvolvida por elas, de forma a aferir as razões de certas
manifestações no interior de determinados grupos, tal como o fazem e, que
relações interétnicas são produzidas entre elas, tanto quanto a sua convivência
na diversidade. Ajuda inclusive, a compreender a identidade étnica de diversos
grupos. Uma das importâncias do estudo das etnias e suas etnicidades[1] é a compreensão das suas
principais demandas cuja satisfação pode evitar conflitos igualmente étnicos
por reivindicação da hegemonia dum em detrimento de outros grupos étnicos. Em
Moçambique os movimentos étnicos ou suas organizações mobilizadoras já foram
bastante efervescentes logo após a morte do “socialismo” e abertura do espaço
político plural. Grupos étnicos aparecem reivindicando a limitação de
oportunidades políticas e sociais, motivados pelo preconceito étnico, o que
levou o seu afastamento dos principais núcleos de tomada de decisão. Porém,
muitos deles morreram cooptados ou foram reduzidos a meras associações
benevolentes entre os seus integrantes. Os poucos que tentam resistir,
enfrentam uma resistência e limitação de espaço de manifestação.
Edições
Redelp: O contexto de sua reflexão tem como
um de seus elementos fundamentais a questão da história de Moçambique.
Infelizmente, a história dos países africanos é pouco conhecida nos demais
continentes. O que você poderia destacar em sua obra que ajudaria a romper com
as lacunas no saber histórico sobre Moçambique?
Uma das importâncias do estudo das etnias e suas etnicidades
é a compreensão das suas principais demandas cuja satisfação pode evitar
conflitos igualmente étnicos por reivindicação da hegemonia dum em detrimento
de outros grupos étnicos.
Óscar
Namuholopa: A História de Moçambique é vasta. O
que destaco na minha obra é o contexto histórico de Moçambique que de certa
forma ajuda a compreender as relações sociais nele desenvolvidas. Sumariamente
irei me referir dela em três momentos:
(1)
Período pré-mercantil europeu (c. 200/300 -1498). Ocorre neste período a fixação bantu[2] em Moçambique. A
agricultura, a pastorícia, a olaria e a metalurgia são atividades dominantes.
Neste período floresceram no território que mais tarde viria a ser Moçambique,
reinos e Estado que gozavam uma autonomia política e administrativa. São alguns
dos exemplos: os Estado Marava (c. 1200 e 1400 e subsistiu até pelo menos
século XVII); o Estado do Zimbabwe (c.1250-1450); o Estado de Muenemutapa (séc.
XV-XX), entre outros.
(2)
Penetração mercantil europeia e dominação colonial (1498-975). A Europa
enlouquecida com as especiarias do Oriente, buscava chegar às Índias, num
caminho que evitasse o Mediterrâneo, dominado pelos venezianos e genoveses.
Nessa missiva, os portugueses alcançam em 1498 o território que chamariam
Moçambique e cometeram o erro que repetiram dois anos mais tarde ao julgar
terem descoberto o Brasil. Primeiro fizeram-se passar por mercadores e
exploradores e mais tarde, em colonizadores, sobretudo depois da Conferência de
Berlim (1885), para a qual nenhum africano foi convocado e à revelia decidiu
partilhar a África em pedaços tal como a conhecemos hoje. Se no intervalo de
1498 a 1885 a independência dos reinos e Estados africanos era relativa, após a
Conferência de Berlim foi combatida com vista à implantação do Aparelho
Administrativo Colonial.
(3)
A independência e os seus desafios (1975 - aos nossos dias). 10 Anos depois da
guerra contra o colonialismo, Moçambique alcança a independência em 1975 e a
Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), sozinha
proclama Moçambique uma República Popular e seguiu à risca a política do
Socialismo russo. A orientação ideológica do Estado e as medidas tomadas por
esse governo, serviram de base para justificar o conflito armada que se seguiu
à independência, movido por um grupo rebelde. Porém, na verdade o conflito foi
uma representação prática da Guerra Fria. Em 1992 termina o conflito e a partir
de 1994 é posto em prática ensaios democráticos. A obra vai mais a fundo com
estas análises.
Edições
Redelp: Um aspeto teórico importante em sua
obra é a reflexão sobre os movimentos sociais. Como você avalia o atual estágio
de análise dos movimentos sociais?
Óscar
Namuholopa: O campo dos movimentos sociais é
bastante variado, como também variadas são as suas teorias. Várias são as áreas
de estudo que têm se interessado na análise dos Movimentos Sociais. Essa
diversidade dos movimentos sociais e de campos de estudo dos mesmos é
responsável pelas diferentes teorias sobre os movimentos sociais, pois,
estudiosos tendem a aproximar as suas análises às respetivas áreas. Por isso,
encontramos conceitos no mínimo curiosos que podem, inclusive, levar a pensar
em organizações políticas ou certas organizações da sociedade civil com uma
burocracia complexa ou ainda, de movimentos de classe com movimentos sociais. O
que difere os movimentos sociais de outras organizações é a sua base,
constituída por grupos sociais cujos integrantes compartilham a mesma situação
social e seus objetivos que não visam a tomada do poder político, nem
interesses de classe, mas mudança e transformação social no interior da
sociedade capitalista.
Edições
Redelp: Você considera que a teoria dos
movimentos sociais substitui a teoria da luta de classes?
Óscar
Namuholopa: Não. Há diferença entre os movimentos
sociais e os movimentos de classe, idem as suas teorias. A luta de classes opõe
entre o proletariado e a burguesia e em causa estão as relações de produção. A
sua teoria grandemente formulada por Karl Marx, visa emancipar a classe
proletária enquanto detentora da força de trabalho, a lutar contra a exploração
burguesa e, talvez no seu viés utópico, a única por sua consciência,
responsável pela realização da grande revolução social. Por seu turno, os
movimentos sociais batem-se em torno das demandas sociais mais candentes na
sociedade capitalista. A sua teoria cinge-se na análise das suas bases de
sustentação, das suas motivações, das suas tipificações, da natureza e o fim
último das suas ações. A luta de classes visa a melhoria das condições das
respectivas classes (camponeses, operários, intelectuais, etc.) enquanto a luta
dos movimentos sociais é pela solidariedade ao grupo social do qual se faz
parte (estudantes, negros, mulheres, etc) e as suas ações são em prol das
mudanças sociais. As duas, ocorrem nos nossos dias.
Edições
Redelp: Como você analisa a ideia de
construção da utopia de uma sociedade moderna em Moçambique? Esse projeto se
realizou, fracassou ou ainda está em andamento?
Óscar Namuholopa: A ideia de construção de uma sociedade moderna em Moçambique não passou de uma utopia, como bem disse. A economia colonial foi “semifeudal” o que contribuiu para a ruralização da população moçambicana. Pensar em transformar essa mesma sociedade em moderna num processo que consistiu na imposição de realidades alheias, por um lado, e na restrição de práticas de modos de vida costumeiros, por outro, era uma violência. O que se pretendia fazer era um autêntico desafio à lei da natureza. A mudança da vida social é um processo gradual e respeita as dinâmicas de evolução social. O projeto fracassou. A população que antes tinha a sua autonomia, para depois passar a viver em aglomerados que se chamaram de aldeias comunais que tinham por função aperfeiçoar o modo de vida “moderna”, livre de hábitos e costumes ditos “tradicionais”, era uma negação aos valores seculares do povo. A população que alegava deixar para trás os seus valores históricos e espirituais, abandonou os tais centros e retomou a vida nos seus lugares de procedência. O tempo, mestre da vida, foi responsável em resgatar as práticas antes proibidas e consideradas atrasadas, no contexto do projeto de formação do “Homem novo”[3].
Edições
Redelp: O Mociza ainda tem um significado
importante na sociedade moçambicana?
Óscar
Namuholopa: Sim. Embora não com o mesmo foco
anterior. Continua defendendo e promovendo os direitos dos cidadãos
moçambicanos, especificamente na Província da Zambézia. A mercantilização das
relações sociais que corrompeu a juventude com ganhos imediatos e a postergar
ações por solidariedade, a restrição e controle de ações das organizações da
sociedade civil, a dependência de angariação de recursos para efetivação das
suas ações e sua consequente redução de oferta, aliados às desconfianças
políticas pelas suas ações emancipatórias, são alguns dos fatores que afetam a
dinâmica do Mociza hoje.
A luta de classes visa a melhoria das condições das
respectivas classes (camponeses, operários, intelectuais, etc.) enquanto a luta
dos movimentos sociais é pela solidariedade ao grupo social do qual se faz
parte (estudantes, negros, mulheres, etc) e as suas ações são em prol das
mudanças sociais.
Edições Redelp: A
sua pesquisa sobre o Mociza se baseou em fontes primárias. Você espera que, a
partir dessa pesquisa pioneira, novas pesquisas surgirão a respeito dessa
organização civil?
Óscar
Namuholopa: Sem margem de dúvida. Se antes as
informações a respeito do Mociza eram limitadas por falta de fontes, hoje essa
poderá não ser mais a razão. O livro fornece informações sobre a gênese, os
desdobramentos em torno dos seus objetivos e uma discussão teórica sobre os
movimentos sociais e étnicos e sobre o enquadramento específico do Mociza no
quadro das organizações da sociedade civil.
Edições Redelp.
Como você analisa a herança colonial de Moçambique? Ela seria apenas negativa?
Ela ainda se faz presente na sociedade moçambicana?
Óscar
Namuholopa: A herança colonial em Moçambique é
inegável. Evidências são as
infraestruturas que resultam desse tempo, financiadas pelos próprios
moçambicanos através dos impostos e exploração da força de trabalho; as
instituições político-administrativas que muito se inspiram no modelo
português; a descendência que resulta da miscigenação entre a população
europeia e africana; a cultura em que faz parte a língua Portuguesa, adotada
como oficial em Moçambique e; a memória da agressão colonial em si. Porém, por
mais que pareça, difícil é assumir que essa herança ou parte dela é positiva.
Afirmar isso, começaríamos por questionar, olhando pelas suas manifestações, se
colonização em si foi boa. Obviamente que não. Afirmar isso seria legitimar os
estereótipos criados para justificar a colonização. Não vou me alongar nesta
questão tal como o faço no livro. Pode então se perguntar: Estaria Moçambique
no estágio em que se encontra hoje, não fosse a colonização? Basta recorrer ao
caso da Etiópia para concluir. Na
verdade, aquando da penetração portuguesa, em Moçambique havia centros urbanos
em crescimento que serviam de entrepostos comerciais com os árabes. Cito os
exemplos de Sofala, Quelimane e Ilha de Moçambique. Todavia, é preciso
reconhecer que a língua legada como herança colonial faz de Moçambique membro
da lusofonia e amigo dos seus pares.
[1]Etnia difere da etnicidade.
Enquanto etnia resume-se como um grupo que se pode identificar pelas mesmas
características culturais, a etnicidade
é a manifestação da identidade étnica.
[2]Família a que pertence a
população de Moçambique, como dos demais países da África Austral. Tem-se como
a casa bantu a região dos grandes lagos, de onde partiu a sua expansão em
diferentes sentidos de África.
[3] Homem livre
do obscurantismo, da mentalidade burguesa e das ideologias coloniais, um homem
que assume os valores da sociedade “socialista”. Velho era tudo relacionado com
o capitalismo e colonialismo, e “Novo”, valores do Socialismo.
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