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ETNIA E MOVIMENTOS SOCIAIS EM MOÇAMBIQUE - ENTREVISTA COM ÓSCAR NAMUHOLOPA

 

ETNIA E MOVIMENTOS SOCIAIS EM MOÇAMBIQUE

ENTREVISTA COM ÓSCAR NAMUHOLOPA

EDIÇÕES REDELP

 

Óscar Namuholopa é sociólogo e pesquisador dos movimentos sociais. É graduado em Ensino de História pela Universidade Pedagógica de Moçambique; Mestre e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás. Ele também é autor do livro As Relações Étnicas em Moçambique e a Formação do Mociza (Goiânia: Edições Redelp, 2022), obra que é tema da entrevista abaixo. Namuholopa explica vários aspectos relacionados com sua obra, enriquecendo as informações a seu respeito e contextualizando a questão do Mociza e das Relações Étnicas em Moçambique.

 

Edições Redelp: Qual foi a sua intenção em tematizar e publicar uma obra sobre as relações étnicas em Moçambique e a formação do Mociza?

 

Óscar Namuholopa: Moçambique é um país pluriétnico, cuja convivência pacífica é aparente.  Grupos étnicos há que reivindicam o seu afastamento dos círculos de tomada de decisão. Assistiu-se então, após a promulgação da segunda República em 1990 que permitiu a liberdade de associação, reunião e de manifestação, antes limitadas por lei desde a independência em 1975, uma corrida na constituição de movimentos de viés étnico. O Mociza surge nesse contexto, como primeiro movimento na sociedade civil e que inspirou tantas outras organizações e, por conseguinte, pouco estudado. Portanto, a minha intenção ao propor esta temática visava buscar compreender as diversas determinações que contribuíram para a formação do Mociza e analisar as suas ações concretas na emancipação social e defesa dos interesses coletivos da população da Zambézia

 

Edições Redelp: O Mociza não é muito conhecido no Brasil e outros países de idioma português. Poderia dizer, sinteticamente, o que é o Mociza?

 

Óscar Namuholopa: O Mociza é a designação abreviada de Movimento Cívico de Solidariedade e Apoio ao Desenvolvimento da Zambézia. A Zambézia é uma província do Centro de Moçambique. Portanto, as relações sociais desenvolvidas na primeira República (1975-1990) e os efeitos do conflito armado que se seguiu à independência, levaram à população da Zambézia a compreender a sua realidade social concreta e, por conseguinte, o despertar da consciência étnica e senso de pertencimento, o que levou à formação de uma organização que falasse em nome dela, em defesa dos seus mais altos interesses. Os seus objetivos centram-se, principalmente, na defesa dos direitos do cidadão e de cidadania, promoção do desenvolvimento socioeconômico e territorial da Zambézia. À época da sua formação, tinha também em vista a reconstituição do tecido social que pela guerra encontrava-se desagregado. O Mociza é uma ramificação do movimento social de caráter étnico, que assume uma forma de organização mobilizadora. Ele é pluriétnico pelo fato do grupo que o sustenta ser constituído por vários grupos étnicos da Província da Zambézia. Os seus objetivos são amplos, por compreenderem várias situações da sua população.

 

O Mociza é uma ramificação do movimento social de caráter étnico, que assume uma forma de organização mobilizadora. Ele é pluriétnico pelo fato do grupo que o sustenta ser constituído por vários grupos étnicos da Província da Zambézia. Os seus objetivos são amplos, por compreenderem várias situações da sua população.

 

Edições Redelp: A questão da etnia é bastante trabalhada na antropologia e em outras áreas. Qual o significado de estudar as etnias em Moçambique? Os movimentos étnicos são influentes nesse país?

 

Óscar Namuholopa: Como disse, Moçambique é constituído por várias etnias. O seu estudo é muito importante para compreender a dinâmica social desenvolvida por elas, de forma a aferir as razões de certas manifestações no interior de determinados grupos, tal como o fazem e, que relações interétnicas são produzidas entre elas, tanto quanto a sua convivência na diversidade. Ajuda inclusive, a compreender a identidade étnica de diversos grupos. Uma das importâncias do estudo das etnias e suas etnicidades[1] é a compreensão das suas principais demandas cuja satisfação pode evitar conflitos igualmente étnicos por reivindicação da hegemonia dum em detrimento de outros grupos étnicos. Em Moçambique os movimentos étnicos ou suas organizações mobilizadoras já foram bastante efervescentes logo após a morte do “socialismo” e abertura do espaço político plural. Grupos étnicos aparecem reivindicando a limitação de oportunidades políticas e sociais, motivados pelo preconceito étnico, o que levou o seu afastamento dos principais núcleos de tomada de decisão. Porém, muitos deles morreram cooptados ou foram reduzidos a meras associações benevolentes entre os seus integrantes. Os poucos que tentam resistir, enfrentam uma resistência e limitação de espaço de manifestação.    

 

Edições Redelp: O contexto de sua reflexão tem como um de seus elementos fundamentais a questão da história de Moçambique. Infelizmente, a história dos países africanos é pouco conhecida nos demais continentes. O que você poderia destacar em sua obra que ajudaria a romper com as lacunas no saber histórico sobre Moçambique?

 

Uma das importâncias do estudo das etnias e suas etnicidades é a compreensão das suas principais demandas cuja satisfação pode evitar conflitos igualmente étnicos por reivindicação da hegemonia dum em detrimento de outros grupos étnicos.

 

Óscar Namuholopa: A História de Moçambique é vasta. O que destaco na minha obra é o contexto histórico de Moçambique que de certa forma ajuda a compreender as relações sociais nele desenvolvidas. Sumariamente irei me referir dela em três momentos:

(1) Período pré-mercantil europeu (c. 200/300 -1498).  Ocorre neste período a fixação bantu[2] em Moçambique. A agricultura, a pastorícia, a olaria e a metalurgia são atividades dominantes. Neste período floresceram no território que mais tarde viria a ser Moçambique, reinos e Estado que gozavam uma autonomia política e administrativa. São alguns dos exemplos: os Estado Marava (c. 1200 e 1400 e subsistiu até pelo menos século XVII); o Estado do Zimbabwe (c.1250-1450); o Estado de Muenemutapa (séc. XV-XX), entre outros.

(2) Penetração mercantil europeia e dominação colonial (1498-975). A Europa enlouquecida com as especiarias do Oriente, buscava chegar às Índias, num caminho que evitasse o Mediterrâneo, dominado pelos venezianos e genoveses. Nessa missiva, os portugueses alcançam em 1498 o território que chamariam Moçambique e cometeram o erro que repetiram dois anos mais tarde ao julgar terem descoberto o Brasil. Primeiro fizeram-se passar por mercadores e exploradores e mais tarde, em colonizadores, sobretudo depois da Conferência de Berlim (1885), para a qual nenhum africano foi convocado e à revelia decidiu partilhar a África em pedaços tal como a conhecemos hoje. Se no intervalo de 1498 a 1885 a independência dos reinos e Estados africanos era relativa, após a Conferência de Berlim foi combatida com vista à implantação do Aparelho Administrativo Colonial.  

(3) A independência e os seus desafios (1975 - aos nossos dias). 10 Anos depois da guerra contra o colonialismo, Moçambique alcança a independência em 1975 e a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), sozinha proclama Moçambique uma República Popular e seguiu à risca a política do Socialismo russo. A orientação ideológica do Estado e as medidas tomadas por esse governo, serviram de base para justificar o conflito armada que se seguiu à independência, movido por um grupo rebelde. Porém, na verdade o conflito foi uma representação prática da Guerra Fria. Em 1992 termina o conflito e a partir de 1994 é posto em prática ensaios democráticos. A obra vai mais a fundo com estas análises.

 

Edições Redelp: Um aspeto teórico importante em sua obra é a reflexão sobre os movimentos sociais. Como você avalia o atual estágio de análise dos movimentos sociais?

 

Óscar Namuholopa: O campo dos movimentos sociais é bastante variado, como também variadas são as suas teorias. Várias são as áreas de estudo que têm se interessado na análise dos Movimentos Sociais. Essa diversidade dos movimentos sociais e de campos de estudo dos mesmos é responsável pelas diferentes teorias sobre os movimentos sociais, pois, estudiosos tendem a aproximar as suas análises às respetivas áreas. Por isso, encontramos conceitos no mínimo curiosos que podem, inclusive, levar a pensar em organizações políticas ou certas organizações da sociedade civil com uma burocracia complexa ou ainda, de movimentos de classe com movimentos sociais. O que difere os movimentos sociais de outras organizações é a sua base, constituída por grupos sociais cujos integrantes compartilham a mesma situação social e seus objetivos que não visam a tomada do poder político, nem interesses de classe, mas mudança e transformação social no interior da sociedade capitalista.

 

Edições Redelp: Você considera que a teoria dos movimentos sociais substitui a teoria da luta de classes?

 

Óscar Namuholopa: Não. Há diferença entre os movimentos sociais e os movimentos de classe, idem as suas teorias. A luta de classes opõe entre o proletariado e a burguesia e em causa estão as relações de produção. A sua teoria grandemente formulada por Karl Marx, visa emancipar a classe proletária enquanto detentora da força de trabalho, a lutar contra a exploração burguesa e, talvez no seu viés utópico, a única por sua consciência, responsável pela realização da grande revolução social. Por seu turno, os movimentos sociais batem-se em torno das demandas sociais mais candentes na sociedade capitalista. A sua teoria cinge-se na análise das suas bases de sustentação, das suas motivações, das suas tipificações, da natureza e o fim último das suas ações. A luta de classes visa a melhoria das condições das respectivas classes (camponeses, operários, intelectuais, etc.) enquanto a luta dos movimentos sociais é pela solidariedade ao grupo social do qual se faz parte (estudantes, negros, mulheres, etc) e as suas ações são em prol das mudanças sociais. As duas, ocorrem nos nossos dias.

 

Edições Redelp: Como você analisa a ideia de construção da utopia de uma sociedade moderna em Moçambique? Esse projeto se realizou, fracassou ou ainda está em andamento?

 

Óscar Namuholopa: A ideia de construção de uma sociedade moderna em Moçambique não passou de uma utopia, como bem disse. A economia colonial foi “semifeudal” o que contribuiu para a ruralização da população moçambicana. Pensar em transformar essa mesma sociedade em moderna num processo que consistiu na imposição de realidades alheias, por um lado, e na restrição de práticas de modos de vida costumeiros, por outro, era uma violência. O que se pretendia fazer era um autêntico desafio à lei da natureza. A mudança da vida social é um processo gradual e respeita as dinâmicas de evolução social. O projeto fracassou. A população que antes tinha a sua autonomia, para depois passar a viver em aglomerados que se chamaram de aldeias comunais que tinham por função aperfeiçoar o modo de vida “moderna”, livre de hábitos e costumes ditos “tradicionais”, era uma negação aos valores seculares do povo. A população que alegava deixar para trás os seus valores históricos e espirituais, abandonou os tais centros e retomou a vida nos seus lugares de procedência. O tempo, mestre da vida, foi responsável em resgatar as práticas antes proibidas e consideradas atrasadas, no contexto do projeto de formação do “Homem novo”[3].


Edições Redelp: O Mociza ainda tem um significado importante na sociedade moçambicana?

 

Óscar Namuholopa: Sim. Embora não com o mesmo foco anterior. Continua defendendo e promovendo os direitos dos cidadãos moçambicanos, especificamente na Província da Zambézia. A mercantilização das relações sociais que corrompeu a juventude com ganhos imediatos e a postergar ações por solidariedade, a restrição e controle de ações das organizações da sociedade civil, a dependência de angariação de recursos para efetivação das suas ações e sua consequente redução de oferta, aliados às desconfianças políticas pelas suas ações emancipatórias, são alguns dos fatores que afetam a dinâmica do Mociza hoje.

 

 

A luta de classes visa a melhoria das condições das respectivas classes (camponeses, operários, intelectuais, etc.) enquanto a luta dos movimentos sociais é pela solidariedade ao grupo social do qual se faz parte (estudantes, negros, mulheres, etc) e as suas ações são em prol das mudanças sociais.

 

Edições Redelp: A sua pesquisa sobre o Mociza se baseou em fontes primárias. Você espera que, a partir dessa pesquisa pioneira, novas pesquisas surgirão a respeito dessa organização civil?

 

Óscar Namuholopa: Sem margem de dúvida. Se antes as informações a respeito do Mociza eram limitadas por falta de fontes, hoje essa poderá não ser mais a razão. O livro fornece informações sobre a gênese, os desdobramentos em torno dos seus objetivos e uma discussão teórica sobre os movimentos sociais e étnicos e sobre o enquadramento específico do Mociza no quadro das organizações da sociedade civil.

 

Edições Redelp. Como você analisa a herança colonial de Moçambique? Ela seria apenas negativa? Ela ainda se faz presente na sociedade moçambicana?

 

Óscar Namuholopa: A herança colonial em Moçambique é inegável.  Evidências são as infraestruturas que resultam desse tempo, financiadas pelos próprios moçambicanos através dos impostos e exploração da força de trabalho; as instituições político-administrativas que muito se inspiram no modelo português; a descendência que resulta da miscigenação entre a população europeia e africana; a cultura em que faz parte a língua Portuguesa, adotada como oficial em Moçambique e; a memória da agressão colonial em si. Porém, por mais que pareça, difícil é assumir que essa herança ou parte dela é positiva. Afirmar isso, começaríamos por questionar, olhando pelas suas manifestações, se colonização em si foi boa. Obviamente que não. Afirmar isso seria legitimar os estereótipos criados para justificar a colonização. Não vou me alongar nesta questão tal como o faço no livro. Pode então se perguntar: Estaria Moçambique no estágio em que se encontra hoje, não fosse a colonização? Basta recorrer ao caso da Etiópia para concluir.  Na verdade, aquando da penetração portuguesa, em Moçambique havia centros urbanos em crescimento que serviam de entrepostos comerciais com os árabes. Cito os exemplos de Sofala, Quelimane e Ilha de Moçambique. Todavia, é preciso reconhecer que a língua legada como herança colonial faz de Moçambique membro da lusofonia e amigo dos seus pares.

 



[1]Etnia difere da etnicidade. Enquanto etnia resume-se como um grupo que se pode identificar pelas mesmas características  culturais, a etnicidade é a manifestação da identidade étnica.

[2]Família a que pertence a população de Moçambique, como dos demais países da África Austral. Tem-se como a casa bantu a região dos grandes lagos, de onde partiu a sua expansão em diferentes sentidos de África.

[3] Homem livre do obscurantismo, da mentalidade burguesa e das ideologias coloniais, um homem que assume os valores da sociedade “socialista”. Velho era tudo relacionado com o capitalismo e colonialismo, e “Novo”, valores do Socialismo.

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