FEMINISMO E IDEOLOGIA
ENTREVISTA COM JACIARA VEIGA
EDIÇÕES REDELP
Edições
Redelp: Qual foi o seu objetivo ao lançar essa obra na atualidade?
Jaciara
Veiga: Eu já me interessava por questões relacionadas às mulheres e suas
lutas, desde a graduação. Sempre que possível abordava a temática acerca das
mulheres em minhas pesquisas. O curioso era perceber que toda vez que me
manifestava em defesa das mulheres, era reconhecida como feminista, mesmo sem
falar em feminismo. Nunca me considerei feminista, afinal, não sabia, de fato,
o que era o feminismo, para além das representações cotidianas hegemônicas
acerca do mesmo: “movimento de defesa dos direitos das mulheres”; “movimento de
emancipação das mulheres” etc. No mestrado minha pesquisa foi acerca dos
movimentos sociais, mais especificamente, o movimento feminino, e foi aí que
descobri que há uma diferença entre movimento feminino e feminismo. Apesar de
serem referidos da mesma forma, como se ambos fossem a mesma coisa, sendo
reconhecidos como “movimento feminista”, eles se diferem. Nesse sentido, meu
objetivo com o lançamento da obra, é mostrar a existência dessa diferença, bem
como mostrar que existe uma luta pela rememoração das lutas femininas, e que
nesse processo ocorreu uma hegemonia feminista que acabou transformando até as
mulheres que recusaram o feminismo em adeptas dele – quando falamos em luta das
mulheres, logo nos vem à mente “movimento feminista”. É necessário fazermos a
distinção entre movimento feminino e feminismo, para compreendermos a diferença
entre ambos e, por conseguinte, contribuir com a superação do equívoco que
considera todas as lutas históricas e concretas das mulheres como sendo lutas
feministas. Além de muitas mulheres não se reconhecerem como feministas,
diversas lutas, movimentos, ações em prol das mulheres, se concretizaram sem
relação ou mesmo conhecimento do feminismo.
Edições
Redelp: O feminismo tem uma longa história, embora seu sucesso tenha sido
ascendente com o passar do tempo. Por qual motivo o feminismo vem se tornando
tão importante? A situação da mulher piorou? Ou o desenvolvimento do feminismo
é independente da situação da mulher? Ou são as mulheres que ficaram mais
exigentes ou, ainda, mais conscientes?
Jaciara
Veiga: A situação das mulheres continua ruim, no entanto, elas não estão
mais conscientes, pelo contrário, estão mais iludidas acerca de sua situação na
sociedade. O feminismo vem
passando a ilusão de que os problemas que atingem as mulheres podem ser
solucionados no interior do capitalismo sendo, portanto, suficiente atacar
somente alguns de seus aspectos. Ao criar uma imagem “falsa” da mulher, e de
sua situação social, o feminismo não apresenta solução real para a resolução
dos problemas das mulheres em geral, só aponta os “efeitos” (de forma
ideológica), propondo paliativos, tais como as microrreformas que nada
resolvem, somente contribuem com sua permanência, uma vez que ofusca sua
verdadeira essência. Apesar de ser hegemônico e se colocar como representante
dos interesses das mulheres em geral, o feminismo não passa de um
empobrecimento da luta das mulheres que, em sua maioria, giram em torno de cargos,
leis, moral, controle, repressão. As situações e soluções reais, dão lugar ao artificial como forma de luta
que nada muda, a não ser para algumas poucas mulheres. O feminismo ilude as
mulheres com ínfimas conquistas no interior do capitalismo desviando, deste
modo, as mulheres da verdadeira luta por sua emancipação. O feminismo é
produto das mulheres intelectualizadas que rapidamente ganhou força, devido a
terem mais espaço tanto nos meios oligopolistas de comunicação quanto nos meios
acadêmicos, por terem mais recursos, possuírem mais acesso à formação e
informação (logo, maior bagagem cultural); terem acesso a políticas culturais,
financiamento de pesquisa, possibilitando uma estrutura organizativa maior,
conseguindo convencer e influenciar as mulheres das classes inferiores, e
também seu movimento. Ao se tornar hegemônico passa a apresentar sua versão
ideológica da história como a verdadeira história da luta das mulheres em
geral, causando impactos no movimento feminino, influenciando nos objetivos,
forma de mobilização, tipo de insatisfação do grupo social das mulheres.
A situação das mulheres continua ruim, no entanto, elas não estão mais
conscientes, pelo contrário, estão mais iludidas acerca de sua situação na
sociedade. O feminismo vem passando a ilusão de que os problemas que atingem as
mulheres podem ser solucionados no interior do capitalismo sendo, portanto,
suficiente atacar somente alguns de seus aspectos.
Edições
Redelp: A sua abordagem é uma crítica ao feminismo. Em que sua crítica ao
feminismo se distingue de outras, tanto as do passado quanto as do presente?
Jaciara
Veiga: Acredito que uma
importante distinção é a de ter conseguido perceber a relação entre feminismo e
capitalismo, entendendo que seu processo histórico de constituição e
consolidação está indissoluvelmente ligado à história do capitalismo e suas
mutações sociais, políticas e culturais. E que ele não é, portanto, uma
ideologia autônoma e independente da sociedade onde emergiu. Desde o seu
surgimento, o feminismo reproduz as concepções hegemônicas de cada época da
sociedade capitalista demonstrando, desta forma, seu vínculo com o pensamento
burguês e com as concepções políticas burguesas de cada época. Ele é um
fenômeno cultural, uma ideologia que “se divide de acordo com o paradigma
hegemônico e ideologias hegemônicas da época em que cada ideologia feminista
específica é criada”. Ele é, por essência, burguês.
Edições
Redelp: Não considera muita ousadia criticar o feminismo numa época em que
ele é amplamente hegemônico nos meios intelectualizados, nas universidades, nos
meios oligopolistas de comunicação e nos partidos políticos progressistas?
Jaciara
Veiga: Bom, não deixa de ser uma ousadia, afinal, além de estar indo na
contramão daquilo é hegemônico – o que, por si só, já gera uma impopularidade,
animosidade –, também não sou uma intelectual hegemônica, muito pelo contrário.
Todavia, acredito que em um mundo onde reina a superficialidade, a hipocrisia,
a mentira, estar sob os holofotes é que soaria estranho. Meu compromisso,
enquanto intelectual engajada, é com a verdade, com a real e radical
transformação das relações sociais existentes, e tudo aquilo que for obstáculo
à sua realização deverá ser criticado, combatido.
Edições
Redelp: Você não vê nenhuma diferença entre o feminismo de Simone de
Beauvoir, de Betty Friedan, Joan Scott? E o feminismo ativista liberal e
radical? Dizer que todas as feministas são iguais não é o mesmo que o
lugar-comum ao afirmar que todos os homens e/ou todas as mulheres são iguais?
Jaciara
Veiga: Vejo sim, algumas diferenças entre as várias tendências do
feminismo. O próprio feminismo, com suas diversas concepções, confirma a
inexistência de unidade entre as mulheres. Contudo, ao
criticar o feminismo não estou abstraindo as diversas concepções feministas,
mas apenas tratando do que é comum a todas elas (mesmo que divergindo em certos
aspectos e se contrapondo sob várias formas). O feminismo apresenta uma essência que se manifesta,
sem exceção, em todas as suas variantes: “as relações entre os sexos como
centrais na análise, seja da realidade social em conjunto, seja de questões
mais específicas ou mais especialmente da questão feminina”. Entendo o feminismo como “um conjunto de ideias que se
caracteriza por se dizer a favor das mulheres e colocar a centralidade do
mundo, das lutas sociais ou dos problemas sociais, nas relações entre homens e
mulheres”. Com isso, a imagem da mulher (e, logo, a do homem também) produzida
pelo feminismo é falsa, pois ela aparece fora
das relações sociais reais. O feminismo não vê a situação geral das mulheres na
sociedade, não considera o pertencimento de classe social de cada mulher, não
leva em consideração as diversas diferenças existentes entre elas, mas ao
contrário, se baseia nas semelhanças, defendendo uma suposta unidade entre as
mulheres. Isso é comum a todos “os
feminismos”.
O feminismo não vê a situação geral das mulheres na sociedade, não
considera o pertencimento de classe social de cada mulher, não leva em
consideração as diversas diferenças existentes entre elas, mas ao contrário, se
baseia nas semelhanças, defendendo uma suposta unidade entre as mulheres. Isso
é comum a todos “os feminismos”.
Edições
Redelp: E o feminismo anarquista, não seria uma alternativa viável?
Jaciara
Veiga: O anarquismo é uma doutrina política que não tem uma base
teórico-metodológica própria. Devido a isso, o anarquismo (nas suas várias
tendências) acaba por assumir as concepções ideológicas e metodológicas
burguesas como base, comprometendo, deste modo, sua análise da realidade, bem
como sua intervenção prática na mesma. Até mesmo o anarquismo revolucionário
acaba caindo no ecletismo e em contradição, ao tentar unir seus princípios
revolucionários às ideologias burguesas. O feminismo é um produto ideológico
das mulheres intelectuais, e é predeterminado pelas ideologias burguesas. Sua
análise da realidade, bem como da situação das mulheres na sociedade demonstra
seu vínculo com o pensamento burguês e com as concepções políticas burguesas.
“O feminismo é, por essência, burguês”. Feminismo e anarquismo, sob influência
de concepções burguesas, analisam a realidade de forma equivocada, logo, suas
ações para a transformação da realidade também o é. Desta forma, podemos
afirmar que o feminismo anarquista não é uma alternativa viável para a luta
pela emancipação real das mulheres.
Jaciara Veiga: O marxismo é uma teoria que se caracteriza por ser expressão do movimento operário, isto é, é expressão teórico-política do proletariado revolucionário. É uma teoria da revolução proletária, que se fundamenta nos seguintes princípios fundamentais: a história das sociedades de classe é a história da luta de classes; o proletariado é a classe revolucionária de nossa época; a autoemancipação proletária é a forma de realização da emancipação humana etc. Isso significa dizer que é a classe operária (e seus aliados) que tende a realizar a transformação radical do conjunto das relações sociais, rompendo radicalmente com todas as ideologias e formas de ilusões da sociedade capitalista. O proletariado ao se libertar levará à libertação toda a sociedade, pois ele é a dissolução da sociedade de classes. As marxistas Alexandra Kollontai, Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo, Sylvia Pankhurst não se diziam feministas, elas o criticavam. O que ocorreu foi que as feministas realizaram uma recuperação memorial (reinterpretação de algo verdadeiro transformando-o em falso) e, por conseguinte, uma apropriação da história do movimento feminino apagando seu vínculo com a luta do movimento operário. Além de promover uma recuperação de suas lutas, retirando elementos fundamentais destas, transformou-as em “lutas feministas”. Mesmo com suas críticas ao feminismo, essas autoras são apresentadas como feministas, demonstrando que além da apropriação da história do movimento feminino, as feministas também realizaram uma recuperação memorial de suas obras, deformando-as de acordo com seus interesses. O feminismo, por outro lado, é uma ideologia que analisa a realidade através das relações entre os sexos, sustentando que todas as mulheres deveriam se unir em prol de sua emancipação, levando a cabo uma “guerra” entre homens e mulheres. E o feminismo dito marxista, não foge disso. De acordo com as “feministas marxistas”, o marxismo não compreendeu a especificidade da situação das mulheres, tratando-a apenas como questão de classe. Coube, posteriormente, ao “feminismo marxista” essa tarefa. Partindo do que chamam de um “marxismo renovado”, questionam a constituição da classe social (esta não seria composta por indivíduos homogêneos, sobre a qual recai um único tipo de “opressão”, daí sua recusa à primazia da classe, e defesa da intersecção com as demais “opressões”, como as de raça, gênero etc.). Com isso abriu-se espaço para a discussão da existência de outros “sujeitos revolucionários” que não o proletariado – para elas, as mulheres são o sujeito revolucionário de nossa época. Esse suposto marxismo das feministas é, na verdade, um pseudomarxismo (leninista, trotskista etc.), que nada mais é que uma deformação e marginalização do marxismo autêntico. Apesar do “feminismo marxista” vincular a luta pela emancipação das mulheres à luta contra o capitalismo, ainda colocam que são as mulheres, e não o proletariado, que devem estar à frente da mesma. Nesse sentido, podemos afirmar que marxismo e feminismo são inconciliáveis. Se é marxismo, não é feminismo! Se é feminismo, não é marxismo!
Edições
Redelp: Você distingue feminismo e movimento feminino. Qual é a real
diferença entre ambos?
Jaciara
Veiga: O movimento feminino é um movimento social, que tem como grupo
social de base as mulheres. Este, por sua vez, é caracterizado pela mobilização
das mulheres (através de diversas formas: produção intelectual, manifestações,
reivindicações sob diversos meios, se manifestando contra determinadas
situações como a liberdade corporal, a desigualdade no trabalho, a “opressão”,
o sexismo etc.), mostrando sua insatisfação em relação à determinada situação
social específica. Contudo,
o movimento feminino não é homogêneo, ele está dividido em classes sociais, bem
como entre outras divisões e subdivisões, promovendo no interior do próprio
movimento diferentes representações, concepções, ideologias, organizações,
tendências etc., derivando daí diversas ramificações. As ramificações,
entretanto, são distintas do movimento feminino, logo, não devem ser vistas
como o movimento em sua totalidade, mas como uma parte dele. Esse é o caso do
feminismo, que é uma ramificação do movimento feminino, está ligado a ele, mas
apesar disso, se difere dele em geral, não apenas em suas manifestações
(ideologias, doutrinas, imaginários), mas também por este ser produto das
mulheres da classe intelectual e outras classes próximas. O feminismo se coloca
como representante dos interesses de todas as mulheres, quando de fato, representa
nada mais do que os interesses individuais, setoriais, de algumas mulheres. Não
é possível falarmos em um movimento unitário em uma sociedade dividida em
classes sociais, que gera interesses, valores, sentimentos diversos. Não
podemos confundir o movimento social em sua totalidade, o movimento feminino,
com sua ramificação, o feminismo.
Edições
Redelp: Você é contra o feminismo? E é contra o movimento feminino também?
É contra a luta das mulheres por sua libertação?
Jaciara
Veiga: Não sou contra o movimento feminino. Acredito que as mulheres devem
sim lutar por sua libertação. A grande questão é como se dá essa luta. O
feminismo, como toda ideologia, possui momentos de verdade – sofremos com o
sexismo, a subordinação e a exploração. No entanto, a forma como tudo isso é
tratado pelas feministas, é muito problemática. O feminismo isola as lutas das mulheres das demais
relações sociais e, por conseguinte, as reduz meramente a relação entre
homem-mulher, identificando a causa dos males das mulheres na “maldade inata
dos homens”. Assim, criou-se a ilusão de uma unidade da condição feminina, onde
as mulheres, através de interesses comuns, independentes dos de sua classe,
devem construir uma “fraternidade de sexo”, uma “sororidade”, e lutar todas
juntas. E mais, elas são as “responsáveis” por sua emancipação, e de toda a
humanidade. O feminismo coloca a realidade das mulheres de forma deformada.
Muitas mulheres caíram/caem nos “encantos” do feminismo, e isso tem dificultado
a real compreensão de sua situação na sociedade e, por conseguinte, da real
solução para tal situação. Apesar do discurso, não existem dados acerca das
melhorias na vida das mulheres das classes inferiores. O feminismo é um
problema e não uma solução para a luta das mulheres. A libertação das mulheres
pressupõe o rompimento com o feminismo e suas concepções reducionistas,
maniqueístas acerca de sua situação.
A situação atual das mulheres está longe de ser a ideal. A luta tem que
continuar! Mas, antes de qualquer coisa, é necessário entendermos que a
libertação das mulheres é parte de um processo mais geral e complexo, que é a
libertação humana, e que no interior do capitalismo só é possível pequenas
reformas, conquistas parciais que atingem um número ínfimo de mulheres. Não é
possível resolver os problemas das mulheres no interior do capitalismo!
Edições
Redelp. Qual sua proposta alternativa ao feminismo? Ou considera que a
situação da mulher na sociedade moderna é a ideal e por isso não precisa
melhorar?
Jaciara Veiga: A situação atual das mulheres está longe de ser a ideal. A luta tem que continuar! Mas, antes de qualquer coisa, é necessário entendermos que a libertação das mulheres é parte de um processo mais geral e complexo, que é a libertação humana, e que no interior do capitalismo só é possível pequenas reformas, conquistas parciais que atingem um número ínfimo de mulheres. Não é possível resolver os problemas das mulheres no interior do capitalismo! A superação da condição da mulher na sociedade capitalista só é possível com a superação da própria sociedade capitalista. Deste modo, é de fundamental importância que o movimento das mulheres esteja vinculado ao movimento revolucionário do proletariado (o único que tem condições de superar a sociedade atual, bem como a de criar novas relações sociais). A luta de classes não pode ser substituída pela luta entre os sexos; a luta das mulheres deve ser para além do feminismo (mulheres e homens unidos pela solidariedade de classe), e aliada ao movimento operário, assim como ao lado das demais lutas pela transformação social. As organizações femininas podem/devem tratar de questões específicas que atingem de imediato as mulheres, buscando intervir, minimizar sua situação miserável, mas sempre articulando essa luta ao objetivo final (a transformação radical das relações sociais), onde os interesses de classe estejam acima dos interesses particulares. As organizações femininas devem visar, simultaneamente, a libertação da mulher e da humanidade.
Excelente texto. Parabéns!
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